Júlio Dantas

A CEIA DOS CARDEAIS ( Parte II )
Peça em um acto em verso, representada pela primeira vez 
no antigo teatro D. Amélia, em 28 de Março de 1902.

 
 
 Continuação ....
 
CARDEAL DE MONTMORENCY, defendendo 
o serviço riquíssimo 

Por Deus! È Sevres, Eminência. 

CARDEAL RUFO, sentando-se, num grande  
gesto fanfarrão 

E se não os matei a todos, na verdade, 
Foi p’ra não se fechar a Universidade! 
CARDEAL GONZAGA, profundamente admirado 

Sòzinho contra vinte! Uma luta sangrenta! 

CARDEAL RUFO 

Vinte? Trinta! Ou talvez, contando bem, quarenta! 

CARDEAL DE MONTMORENCY 

E então a cadeirinha? 

CARDEAL RUFO 
Ah! _ Desapareceu. 
CARDEAL GONZAGA 

E a cómica? 
CARDEAL RUFO 

                         Sei lá! 

CARDEAL DE MONTMORENCY 

Quê! Não a seguiu? 

CARDEAL RUFO 
Eu? 
CARDEAL DE MONTMORENCY  

Não tornou a ver? 
CARDEAL RUFO, tristemente 

Não. Nunca mais a vi. 

Foi por isso que a amei, _ porque não a possuí! 

CARDEAL DE MONTMORENCY  

No se caso, Eminência, eu... 
CARDEAL RUFO  

                                                                                Diga. 

CARDEAL DE MONTMORENCY  

Se o consente... 
CARDEAL RUFO  
Seguia a cadeirinha? 

CARDEAL DE MONTMORENCY  
Imediatamente. 
E ao atingi-la, então, curvaria o joelho, 
Tiraria o chapéu em grande estilo velho,  
E prostrando-me junto à portinha doirada 
De corpo ajoelhado e d’alma ajoelhada, 
Diria, num olhar cheio de sonhos loucos: 
“Senhora, perdoai bater-me... com tão poucos!” 

CARDEAL RUFO  
Bela frase! 

CARDEAL DE MONTMORENCY  

                                    Não é? 

CARDEAL RUFO  
Pena não me ocorrer... 
Com tristeza: 

Agora é tarde já para eu lha dizer! 

CARDEAL DE MONTMORENCY  

Tinha espírito... _ Enfim, o amor, pensando bem 
Não é só bravura, é o espírito também, 
Essa força, essa chama, imperceptível quase, 
Que é a alma do gesto e a nobreza da frase, 
Qualquer coisa de fino, e flexuoso, e ardente, 
Que nos faz ajoelhar irreflectidamente, 
Perturba, vence, infiltra, e, mal afora à boca, 
Veste de seda e oiro a confissão mais louca... 
Que seria o amor sem espírito, Eminência? 
Uma paixão brutal ou uma impertinência, 
Sem pureza, sem tudo aquilo que resume 
O coração num beijo e a alma num perfume! 
Com uns punhos de renda, até a ofensa é linda! 
Pode ser fina a espada; a frase é mais ainda: 
Uma escola subtil de esgrima delicada... 
Procura o coração, a frase, como a espada,  
E desfaz-se, ao ferir, em pedras preciosas, 
Como os raios de Sol quando ferem as rosas... 
Se ao homem vence a espada e se é belo vencer, 
O espírito faz mais, _ porque vence a mulher! 
No meu tempo, no tempo em que amei e vivi, 
Fui o que ainda hoje são os de Montmorency, 
O grande espirituoso, o leão da nobreza, 
Cabeleira em anéis e gola à genovesa, Passeando o meu orgulho e o meu bastão solene 
Pelos vastos salões da Duquesa de Maine. 
Ah! Como já vai longe! _ Um dia, o velho Philidor 
Dedilhava no cravo um certo minuete, 
Um mimo, o que há de mais século XVII... 

Querendo recordar-se e cantando: 
Lá-ri la-ra, la-ri... 
Suspendendo, tristemente: 
Já não me lembro bem... 
Tudo passa! 
Tentando de novo recordar-se: 

                Lá-ri-la... _ Nesse instante, alguém, 
Uma bela mulher que eu já tinha encontrado 
Nas ruas de Versalhe, em seu coche encontrado 
A embaixatriz da Áustria, uma deusa, um assombro, 
Poisou, num doce gesto, a mão sobre o meu ombro, 
E disse numa voz desdenhosa: “Marquês, 
Detesto-os”. Sorri. Nisto, segunda vez: 
“Aborreço-os” Ri ainda. Ah, Eminências! 
Uma mulher bonita a dizer insolências 
É a coisa mais galante e mais deliciosa 
Que pode imaginar-se. É como se uma rosa 
Soltasse imprecações, vermelha e melindrada, 
Contra as asas de Sol de uma abelha doirada... 
Nisto, terceira vez: “Marquês, tenho-lhe horror”. 
Já não ri. Junto ao cravo, o velho Philidor 
Tocava o seu minuete ingénuo e palaciano... 

Querendo ainda lembrar-se: 

La-ri, la-ra, la ... Não... La-ri... 
Numa expressão dolorosa: 
Há já tanto ano! 
Não me lembro... A velhice! 

Vendo de repente o cravo, e erguendo-se: 
Ah, talvez, sim... Talvez 
O consiga tirar neste cravo holandês. 
                Ferindo as teclas com a mão esquerda, de pé, e conti- 
                nuando  a  falar   para  os  dois  cardeais,  enquanto 
 vai tocando: 

La-ri, la-ra... _ então, decidi-me, Eminências. 
Compus a cabeleira, e em duas reverências. 
O pé atrás, a mão na espada, à moda antiga, 
Curvei-me ante essa bela e fidalga inimiga, 
E disse: “A sua mão. Venha minha senhora. 
Não me detestará daqui a meia hora” _ 
Dançámos o minuete. Ela _ era singular! _ 
Dava-me a impressão de uma renda a dançar, 
Uma renda ligeira, um Saxe transparente 
Onde se iam poisar, pertubadoramente, 
Como um enxame de oiro, espirituoso e leve, 
Desde a breve ironia ao epigrama breve, 
A frase à Marivanx, ardente e complicada, 
O eterno quase tudo _ apenas quase nada_ 
O espírito-mesura, o sorriso eloqüência... 

Ao CARDEAL RUFO, que está mais próximo: 
Não sei precisamente o que disse, Eminência, 
Mas devia ter sido um requinte de graça, 
Galanteio que voa ou perfume que passa, 
Poema cor-de-rosa, apaixonado e brando, 
Que nos dá a ilusão de que se diz sonhando, 
Eloquência d’amor, que perturba a mulher, 
E vence quando ajoelha, e beija quando fere! 

La-ri-la... Terminou o minuete, por fim. 
Meia hora depois, nas sombras do jardim, 
A embaixatriz de Áustria, apaixonada, louca, 
Unindo à minha boca a pequenina boca, 
Dizia-me, a sorrir _ “Como o adoro, Marquês!” 
_ O espírito vencera ainda mais uma vez. 
E enquanto Philidor, junto ao cravo... 

Tocando, à procura, com ansiedade: 
Não sei... 
La-ri-la... 

Depois, numa expressão de súbita alegria, sentando-se 
ao cravo, a tocar: 

O minuete! Achei! Achei! Achei! 

La-ri-ra, la-ri-ra ,la-ra... 

CARDEAL RUFO , erguendo-se e aproximando-se  
do CARDEAL DE MONTMORENCY  
Vossa Eminência 
Perdoa-me, talvez, mais uma impertinência... 

CARDEAL DE MONTMORENCY , levantando-se do cravo 
Era belo, o minuete! 
CARDEAL RUFO, sorrindo 

                                    É que, para vencer 
Nesse jogo floral uma simples mulher 
Parece-me demais a sua meia hora... 

CARDEAL DE MONTMORENCY  
Oh! Pois acha, Eminência? 

CARDEAL RUFO  
O espírito... demora! 
Trinta e tantos brigões, fortes e resolutos, 
Venci eu, a poder de espada, em dois minutos! 

CARDEAL DE MONTMORENCY, ao CARDEAL RUFO 

Seguisse a Niña Boba... A Eminência veria... 
Passava a meia hora e não a venceria! 

Ao CARDEAL GONZAGA, que pensa, em êxtase: 

A Eminência que diz? 

CARDEAL RUFO, acercando-se também 
do CARDEAL GONZAGA 

Em que pensa, cardeal? 
CARDEAL GONZAGA, como quem acorda, os olhos cheios 
de brilho, a expressão transfigurada 

Em como é diferente o amor em Portugal! 
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento... 
é o amor coração, é o amor sentimento. 
Uma lágrima... Um beijo... Uns sinos a tocar... 
Uma parzinho que ajoelha e que vai se casar. 
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora: 
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora! 
O amor simplicidade, o amor delicadeza... 
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa! 
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade, 
Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade, 
Numa ternura casta e numa estima sã, 
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã... 
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas, 
Como se em comunhão se entendessem as rosas, 
Como se todo o amor fosse um amor sòmente... 
Ai, como é diferente! Ai, como é diferente! 

CARDEAL RUFO  

Também vossa Eminência amou? 
CARDEAL GONZAGA  
Também! Também! 
Pode-se lá viver sem ter amado alguém! 
Sem sentir dentro d’alma - ah, podê-la sentir! _ 
Uma saudade em flor, a chorar e a rir! 
Se amei! Se amei! _ Eu tinha uns quinze anos, apenas. 
Ela, treze. Uma amor de crianças pequenas, 
Pombas brancas revoando ao abrir da manhã... 
Era minha priminha. Era quase uma irmã. 
Bonita não seria... Ah, não... Talvez não fosse. 
Mas que profunda olhar e que expressão tão doce! 
Chamava-lhe eu, a rir, a minha mulherzinha... 
Nós brincávamos tanto! Eu sentia-a tão minha! 
Toda a gente dizia em pleno povoado: 
“Não há noiva melhor para o senhor morgado, 
Nem em capela antiga há santa mais santinha...” 
E eu rezava, baixinho: “É minha! É minha! É minha” 
Quanta vez, quanta vez, cansados de brincar,  
Ficávamos a olhar um para o outro, a olhar, 
Todos cheios de Sol, ofegantes ainda... 

Numa grande expressão de dor: 

Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda... 
E, uma noite, a minha alma, a minha luz, morreu! 

Numa revolta angustiosa: 

Deus, se ma quis tirar, p’ra  que foi que ma deu? 
Para quê? Para quê? 

CARDEAL DE MONTMORENCY, ao vê-lo 
erguer-se, amparando-o: 

             Oh! Eminência... 
CARDEAL RUFO, curvando-se também para o amparar, 
comovido: 
Então... 

CARDEAL GONZAGA 

Ai! Pois não via, Deus, que eu tinha coração! 

CARDEAL RUFO 

Eminência 

CARDEAL GONZAGA, caindo sobre a cadeira, a soluçar 

                             Não via! Ah!, não via! Não via! 
Julgou que de um amor outro amor refloria, 
E matou-me... E matou-me! 

CARDEAL DE MONTMORENCY  

                         Eminência... 

CARDEAL GONZAGA 

Afinal, 
Foi esse anjo, ao morrer, que me fez cardeal! 
E eu hoje sirvo a Deus, _ a Deus, que ma levou... 
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY, limpando 
 uma lágrima furtiva,  
enquanto as onze horas soam no Vaticano 

Foi ele, de nós três, o único que amou. 
 
  

Cai o pano lentamente. 
 
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 Remetente : Sílvia Maul