Jorge Fallorca
Praceta Gomes Leal, 4, 7º. Esq. 2795-512
Carnaxide, Portugal
<jfall@mail.telepac.pt>
Alentejo
Era um som que chegava
com as férias, pela voz de uma menina.
Morena - trigueira,
corrigiu-me a Beira implacável - com umas longas tranças,
que às vezes me distraio a procurar na seara.
Eu bem sei que a menina
hoje é uma mulher, e que a seara trocou as tranças pelas
madeixas que lhe realçam a solidão.
Mesmo assim, satisfaz-me
soltar o olhar pela charneca.
Apanhar o voo das cegonhas
e reencontrar o som da menina.
Quando sou capaz disso,
volto a sentir a dimensão do mundo, à medida que a voz dela
ecoa pelo branco dos montes.
Algarve
Há uma curva à
entrada de Lagos, que me fascina.
Hoje é quase só
uma curva, com os paralelos soterrados pelo asfalto, como acabará
por suceder às pequenas casas que a ladeiam.
Dentro em breve, as laranjeiras
e as buganvílias juntar-se-ão ao património arqueológico.
E duvido que a curva
subsista às necessidades rectilíneas do trânsito.
Eu descobria o Algarve,
e a rusticidade e aspereza da minha pronúncia soletrava a doçura
dos nomes iluminados pelos faróis:
Aljezur, Bensafrim.
E adivinhava figos e
mel, cúmplices com a alfarroba e as estevas.
Sempre que posso - e
a ansiedade não me condiciona o prazer da ida, ou a inevitabilidade
do regresso - percorro a mesma estrada litoral, assistindo à agonia
das placas de trânsito de azulejo, onde ainda é possível
ler Odesseixe e distâncias entretanto desactualizadas pelo progresso.
Fiel, a minha curva à
entrada de Lagos aguarda-me para me franquear a vastidão do horizonte.
Os mistérios do
Sul.
Seja qual for a hora,
do dia ou da noite, ou a época do ano, a curva prevalece como fiel
guardiã.
Um livro que se abre
à ida, ou fecha no regresso.
Quando nos encontrámos,
eu desconhecia a imprecisão do aforismo, e que ainda precisaria
de passar muitas passas, até alcançar o Algarve.
Azeite
Uma vez, deparou-se-me
uma rua chamada da Goute d’Or.
Nunca procurei decifrar
o ofício escondido pela metáfora, e duvido que o azeite,
o mel ou o ouro, ainda gotejem nas ruas de Paris.
A Bretanha ficava longe,
no sonho, e eu precisaria de muitos anos, e outra tanta vida, para aceitar
as coisas como são.
Sem dar por ela, a rua
perseguia-me.
Desse as voltas que desse,
a Goute d’Or esperava-me como uma nódoa.
A marca de um sinal.
Passaram-se anos, e ao
temperar a comida, ainda hoje sou assaltado pela magia desse gesto que
me liga áquele fio de ouro.
Quando me predisponho
à vagabundice, à preguiça, deixo que esse fio me conduza
até uma salada em Arzila.
Ou às tibornas
da Beira, e aos cântaros do Algoz.
E consinto que a nódoa
me marque como um sinal de fogo oculto.
Barco
A serração
era um oceano de carcódoas.
Para ser verdade, nem
sequer lhe faltava Adamastores, e tormentas de mães zeladoras de
calções.
Atravessava-se a estrada,
de navalhinha em riste, e sentavamo-nos no chão, encostados aos
troncos.
Grudados pela resina,
permanecíamos horas a fio a desbastar carcódoas, como artesãos
de laboriosos estaleiros navais.
Maior parte das vezes
em silêncio, ouvindo-se apenas a lâmina a desbravar a casca
da circum navegação infantil.
De certeza que também
se ouviam cigarras.
O canto das cigarras
fica sempre bem nestas coisas.
Era Verão, e elas
deveriam estar empoleiradas nos postes telefónicos, antecipando
comunicações.
Lançando o alerta
que não tardaria a fazermo-nos ao mar.
Também os fazíamos
de papel.
Mais no inverno, para
velejar nas tinas do banho semanal.
Ou lançar ao sabor
dos imensos Nilos das valetas animadas pela chuva.
Que me recorde, não
havia naufrágios, pirataria, nem azáfama piscatória.
Os nossos barcos só
cumpriam viagens.
Bilha
Assisti a um ritual da
água.
Estava num café
em Barrancos, e num nicho na parede, junto ao balcão, repousavam
duas bilhas de barro.
Aparentemente inúteis.
Velhas, encardidas pela
sofreguidão das mãos que as levaram à boca.
A minha ignorância
urbana, julgava-as esquecidas, não lhes concedendo sequer as veleidades
do artesanato.
Que turismo se desloca
a um café de Barrancos para ver duas bilhas abandonadas num nicho?
À falta de espargos
com ovos, saboreava um catalão assado, e foi quando me dei conta
que os fregueses iam ao pátio encher as bilhas.
Avaliavam entre si a
frescura de cada uma, e levantavam-nas acima da cabeça.
Bebiam como os vizinhos
espanhois, deixando que a água lhes caísse directamente na
boca.
Sem que os lábios
tocassem o gargalo.
Mal os ouvia, e a discrição
com que se saciavam, não me concedia a oportunidade de ouvir barranquenho.
Creio que é aqui
que há tocadores de pedras.
Escolhem-nas entre os
seixos do leito seco do Guadiana, e interpretam-nas à maneira que
a sede os ensinou.
Como só é
possível entre povos que conhecem a graça da água.
Cachimbo
Comprei-o à sucapa
na Feira de S. Mateus, com o dinheiro que o meu avô me tinha dado
para os carroceis.
Teria pouco mais de uns
13 anos, era outra vez Setembro, e íamos às botas.
Durante anos a fio, o
meu pai não encontrou melhor pretexto para nos refastelarmos com
umas fiadas de enguias de escabeche.
Das de Aveiro.
Das genuínas.
Mumificadas numa barriquinha
de madeira.
Sentia-lhes o cheiro
a quilómetros, ou até meses, entre o travo acidulado do vinagre
e o calor da folha de louro.
Entretanto, a acolhedora
barrica cedeu lugar a um invólucro asséptico, suponho que
ecologicamente correcto e europeu, com a memória das aduelas de
madeira serigrafadas.
Em contrapartida, a minha
mãe sentia-se no direito lambuzar os lábios e os dedos de
açúcar e canela, junto às tentadoras frigideiras das
farturas.
Durante anos assisti
à irremediável comparação dos preços,
entre dentadas de farturas, e a destreza com que deixavamos a espinha das
enguias inteira no prato.
Enquanto isso, os nossos
pés mediam forças com a forma das botas, que levavam a melhor
até chegarmos ao pátio.
E mais tarde, até
ao primeiro dia de escola.
Hoje tenho mais de uma
centena de cachimbos, entre sarrafos baratos e dispendiosos objectos de
colecção.
Mas a melhor cachimbada,
ainda é que me recorda o sabor daquele sarrafinho comprado em Viseu,
atestado de mata-ratos.
E já me apanhei
a ir lavar as mãos para tirar a gordura das enguias, ou sacudir
o açúcar dos lábios.
Cal
Não me cega.
Quando a calma esturrica
os campos do Baixo, procuro-lhe a frescura do tacto.
O repouso do olhar.
Em criança, aprendi
a vê-la ferver na água, e sofri reprimendas por deixar que
me marcasse a roupa.
Apanhávamos pequenos
pedaços de cal nas obras, e aprendíamos a distinguir a viva,
da cozida.
Palavra sublime.
A luz da cal atraía-me
como um insecto.
O sabor também.
Disfarçadamente,
passava a língua na parede das casas de férias, em Salgueirais.
Depois seguiu-se-lhes
a festa alentejana, que ainda hoje me deixa aturdido.
Os meus olhos nunca tinham
visto tanto volume numa parede branca, até onde o ar se separa da
terra.
Nem sempre, porque vi
mulheres de brocha na mão fazerem-se às pedras e à
base das árvores.
Aos telhados também.
Tanta brancura, tanta
cal, purificam o olhar e a alma.
Em Évoramonte,
um ácido mostrou-me a cal a latejar junto à tijoleira do
chão.
Eu sabia que transferia
os movimentos da minha respiração para a cal indefesa da
parede.
Cheguei mesmo a ouvir
a cal caída no chão, bater como uma vaga.
O marejar de um mar interior.
Depois disso, nunca mais
me impressionou que se cubram os cadáveres com cal.
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