Em tomo deste,
foi-se num cálido dia de agosto,
à uma hora da tarde,
todos se tornam poetas:
líricos, são animais vexados,
diante do simples fato,
o morto está morto,
eles permanecem vivos.
É preciso fazer as vontades do morto,
adivinhar-lhe os rogos,
expressos e inexpressos,
sobretudo deste morto
ora chamava-nos a atenção
agarrando-nos pela gola,
ora se tomava,
como menino, dócil,
quando lhe vem a súbita razão.
Este, contudo, é um morto bem-comportado.
Quando lhe sobreveio a notícia,
em breve seria convocado,
preparou, ele próprio, o conveniente aparato,
telefonou aos amigos, conclamando-os ao dever,
e deles aceitou com modéstia,
afetuosamente,
como dele nunca se suporia,
o menor gesto de fraterna ajuda,
dedicou-se, com ainda maior afinco, ao trabalho,
preparou o ânimo dos mesários,
adquiriu o lote lhe caberia,
zelosamente distribuiu convites para as exéquias,
e aguardou, como um peixe, a desova,
percorrendo o último trecho do rio
a ele destinado: agora ele sabe!
agora ele é o mais sábio dos homens!
A cerimônia foi um êxito absoluto,
os lenços se sucediam
e apenas uma boca obstinada,
devido à lentidão excessiva do ritmo,
esteve prestes a pronunciar,
por que não acabamos logo com isto?
* * *
Ah amigos, não espereis de mim
a boa vontade deste extinto.
No meu trespasse haverá escarcéu grosso.
No meio de vós serei o mais sonso dos mortos
e a lista dos meus últimos desejos
será tão vasta
para cumpri-la terá o ritual de ocupar
o número de dias da criação,
para que após,
fartos de mim,
possam descansar à vontade.
Morto, estarei mais vivo do que nunca,
como criança recém-saída do banho,
dão-lhe justamente para dormir.
A família, os amigos, os colegas,
desprovidos de qualquer quinhão, previamente adquirido
(tolo seria eu se o fizesse,
em minha última oportunidade de dar trabalho),
estarão a discutir se serei enterrado
no cemitério dos semitas, dos muçulmanos ou dos cristãos,
enquanto insistirei eu
em ser enterrado em todos,
acrescentando-se aos anteriores,
se possível,
o protestante e o calvinista,
com ligeira preferência
para o Cemitério Marítimo dos Ingleses,
situado junto à baía.
Pedirei um diadema de brilhantes,
pedirei os peixinhos prateados do mar,
pedirei que estejam todos vestidos de vermelho e de verde
e que seja, a maioria, daltônica.
Finalmente, isto é mais do que certo,
se conseguirá, à minha revelia,
marcar o dia, a hora e o local do sucesso,
quando todos poderão ir para casa
meditar sobre o incomensurável fato
de que a vida é desnecessária,
bastando a inscrição:
aqui descansa o doce menino dos canaviais. |