Judith Grossman

Partidas
 
 
Em tomo deste,
foi-se num cálido dia de agosto, 
à uma hora da tarde,
todos se tornam poetas: 
líricos, são animais vexados, 
diante do simples fato,
o morto está morto,
eles permanecem vivos.
É preciso fazer as vontades do morto, 
adivinhar-lhe os rogos,
expressos e inexpressos, 
sobretudo deste morto 
ora chamava-nos a atenção 
agarrando-nos pela gola, 
ora se tomava,
como menino, dócil,
quando lhe vem a súbita razão.
Este, contudo, é um morto bem-comportado.  
Quando lhe sobreveio a notícia, 
em breve seria convocado, 
preparou, ele próprio, o conveniente aparato, 
telefonou aos amigos, conclamando-os ao dever, 
e deles aceitou com modéstia,
afetuosamente,
como dele nunca se suporia, 
o menor gesto de fraterna ajuda,
dedicou-se, com ainda maior afinco, ao trabalho, 
preparou o ânimo dos mesários, 
adquiriu o lote lhe caberia, 
zelosamente distribuiu convites para as exéquias, 
e aguardou, como um peixe, a desova, 
percorrendo o último trecho do rio 
a ele destinado: agora ele sabe! 
agora ele é o mais sábio dos homens!
A cerimônia foi um êxito absoluto, 
os lenços se sucediam 
e apenas uma boca obstinada, 
devido à lentidão excessiva do ritmo, 
esteve prestes a pronunciar,
por que não acabamos logo com isto?

                                    * * *
 

Ah amigos, não espereis de mim 
a boa vontade deste extinto.
No meu trespasse haverá escarcéu grosso.
No meio de vós serei o mais sonso dos mortos 
e a lista dos meus últimos desejos 
será tão vasta
para cumpri-la terá o ritual de ocupar 
o número de dias da criação, 
para que após,
fartos de mim,
possam descansar à vontade.
Morto, estarei mais vivo do que nunca, 
como criança recém-saída do banho, 
dão-lhe justamente para dormir.
A família, os amigos, os colegas, 
desprovidos de qualquer quinhão, previamente adquirido 
(tolo seria eu se o fizesse, 
em minha última oportunidade de dar trabalho), 
estarão a discutir se serei enterrado 
no cemitério dos semitas, dos muçulmanos ou dos cristãos, 
enquanto insistirei eu 
em ser enterrado em todos, 
acrescentando-se aos anteriores, 
se possível,
o protestante e o calvinista, 
com ligeira preferência 
para o Cemitério Marítimo dos Ingleses, 
situado junto à baía.
Pedirei um diadema de brilhantes, 
pedirei os peixinhos prateados do mar, 
pedirei que estejam todos vestidos de vermelho e de verde 
e que seja, a maioria, daltônica.
Finalmente, isto é mais do que certo, 
se conseguirá, à minha revelia, 
marcar o dia, a hora e o local do sucesso, 
quando todos poderão ir para casa 
meditar sobre o incomensurável fato 
de que a vida é desnecessária, 
bastando a inscrição:
aqui descansa o doce menino dos canaviais.

 

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 Página atualizada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  06  de  Agosto  de  1998