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Página atualizada em 08.04.2000
José Iberê Costa Dantas
in A Tarde, Salvador, BA, 
08.04.2000

O jogo das facções



O jogo das facções 

Ibarê Dantas

Quando se pensava que as fontes sobre
Canudos estavam bem conhecidas e
devassadas, eis que surge uma boa
novidade: a publicação das cartas
recebidas pelo Barão de Jeremoabo.
Político militante, Cícero Dantas Martins
(1838/ 1903), além de ser considerado
“um dos mais ativos e combativos homens
públicos da Bahia” era, “possivelmente, o
maior proprietário dos sertões”. Com suas
61 propriedades rurais (59 na Bahia e 2
em Sergipe), sua influência abrangia
vários municipios, expandindo-se, muitas
vezes, pelos governos estaduais e pelo
parlamento nacional. 
  Chefe do Partido Conservador, nem por
isso deixava de ter amigos no concorrente
Partido Liberal. Com a emergência da
República, seu prestigio persistiu. Mas,
na época das expedições do Exército
contra os seguidores de Antonio
Conselheiro, seu grupo político estava na
oposição, alvo de retaliações. Apesar
disso, sua figura persistia como um
interlocutor privilegiado, considerado por
parentes, amigos e correligionários.
Bacharel em Direito pela Faculdade de
Recife, parece ter sido um homem
sistemático, dedicando-se a administrar
seus bens e alimentar seu poder, através
de uma constante e atenta atividade
epistolar. Segundo um seu biógrafo,
Cícero Dantas anotava a data da chegada
e da resposta de cada correspondência e,
ao todo, teria escrito mais de 44.000
cartas entre 1879 e 1903, numa média de
1.432 por ano.
  Canudos: Cartas para o Barão, dotado
de fino acabamento gráfico, é apresentado
pela laureada historiadora Consuelo
Novais Sampaio, que aparece como
organizadora da obra. Contém dois
ensaios: O primeiro, “Canudos, a posição
do Barão de Jeremoabo”, é mais um
esboço biográfico do Barão, escrito pelo
seu trineto, Álvaro Dantas de Carvalho Jr.,
bastante informativo, voltado para
esclarecer a posição daquele político em
face da questão enfocada. No ensaio
seguinte, “Canudos, a construção do
medo”, Consuelo Novais apresenta uma
interpretação arguta, a qual
comentaremos adiante. Seguem a
transcrição de 70 cartas, quase todas
dentro do período 1894/97. Apenas uma
foi escrita pelo Barão. As demais são dos
amigos: autoridades do Judiciário, da
Igreja e da Guarda Nacional, fazendeiros e
comerciantes, todas trazendo referências
mais ou menos ricas sobre o movimento
de Antonio Conselheiro. 
  Sabendo-se que cartas constituem-se
em fonte histórica peculiar pela
informalidade, intimidade e naturalidade
com que muitas vezes se revestem,
tornam-se precioso material sobretudo
quando trazem espontâneas revelações.
No caso das missivas dirigidas ao Barão,
além dessas características, elas são
expressivas também por mostrar como os
grupos dominantes viam e sentiam as
ações dos conselheiristas, bem como as
atitudes governamentais. Para um tema
que tem sido interpretado de variadas
formas, desde as mais reducionistas até
aquelas mais abertas às suas diversas
manifestações, as correspondências
recebidas por Cícero Dantas Martins,
Barão de Jeremoabo, trazem um grande
enriquecimento à historiografia do
assunto. Ao final do livro, ainda consta a
relação dos missivistas e algumas
informações biográficas de cada um dos
interlocutores do Barão. 
  Além desse material empírico inédito e
inestimável sobre os acontecimentos
relacionados a Canudos, o ponto alto da
publicação é o ensaio da doutora
Consuelo Novais Sampaio. Ao tempo em
que empreende a contextualização
bastante inteligente e bem
circunstanciada do ambiente em que as
missivas foram redigidas, procurando
visualizá-las em seu conjunto, a autora
mostra como o medo afetou os estratos
dominantes. Firmada em seleta
bibliografia, a historiadora defende a tese
de que esse medo foi construído e
marcado por dois fantasmas: o da
restauração monárquica, servindo “a
interesses políticos da esfera federal” e o
das fazendas destruídas, que se
manifestou “onde a guerra teve lugar, mas
também serviu de elemento aglutinador
das classes dominantes”. Aí, destaca-se
a questão da propriedade, prejudicada
pelo êxodo dos trabalhadores para
Canudos e ameaçada por supostas
invasões de conselheiristas. Tudo isso
apontava para uma situação insustentável,
superdimencionada pelos boatos de
efeitos avassaladores. Mas, ao tempo em
que a historiadora procura demonstrar a
questão central, indica outro ponto não
menos importante, que é a manipulação
pelas facções políticas, especialmente por
parte das autoridades governistas, da
experiência de Antonio Conselheiro. Após
afirmar que “o fenômeno Canudosd só
pode ser compreendido a partir das ações
da classe dirigente”, Consuelo Novais vai
mostrando como as primeiras medidas
tomadas pelas autoridades constituídas
parecem voltadas sobretudo para debelar
a influência dos políticos adversários. 
  As divergências entre militares e civis,
as substituições de autoridades
municipais, inclusive promotores e
escrivães, as protelações de providências
solicitadas, os recuos das forças armadas
estaduais, na fase inicial, a falta de um
tratamento mais sério e planejado da
questão, tudo vai contribuindo para agravar
as relações entre as forças
governamentais e os conselheiristas pois,
conforme acentua, “o importante era
destruir a facção rival”. Ou seja, as
resoluções sobre a questão Canudos
estavam subordinadas à luta política entre
as facções.
  Embora a História não trabalhe com o
que poderia ter acontecido, mas com o
que aconteceu, fica no entanto a
especulação sobre alternativas de uma
solução negociada, que terminou se
inviabilizando, resultando no maior
massacre humano de nosso País.
  Por esse breve comentário descritivo, o
leitor deve ter percebido a fertilidade do
livro Canudos: Cartas para o Barão, na
medida em que condensa num mesmo
volume rico material empírico, prato feito
para os historiadores e estudiosos da
temática e, ao mesmo tempo, uma
análise interpretativa perspicaz e fecunda,
não apenas pelo que explicita, mas
também pelo que sugere, em linguagem
fluente, desprovida de pedantismo e
agradável de se ler.

José Ibarê Costa Dantas é cientista
político; autor de O Tenentismo em
Sergipe (1974) e A Revolução de 1930
em Sergipe, 1983, entre outros. 



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