Borges na biblioteca
Biógrafo do escritor argentino relembra o período,
no fim dos anos 30, em que trabalhou em um órgão municipal
em Buenos Aires, cercado por funcionários públicos que não
conheciam suas obras e pela grande paixão da sua vida: os livros
INÉDITO
JAMES WOODALL
Em 1937, Jorge (Nota da Redação:
Jorge Guillermo Borges, pai de Jorge Luis Borges) estava perdendo as
forças. Estava cego, e já vinha assim há anos; mas
sua deficiência cardíaca havia agora minado sua saúde
e bem-estar. Aos sessenta e quatro anos, ele era uma figura triste e frustrada,
que ficava sentado por horas em silêncio, olhando para o nada. O
tempo de Leonor (NR: mãe de Jorge Luis Borges) era ocupado
quase exclusivamente por ele - à exceção das necessidades
abstêmias de seu filho - e a morte de seu marido seria, acima de
tudo, um alívio bem-vindo para Jorge. Ele disse, e seu filho sempre
se lembraria disso, "Quiero morir enteramente" - "Quero morrer inteiro"
- em outras palavras, em pleno juízo.
Borges, como ele mesmo disse, "há muito havia
passado da idade em que deveria ter começado a contribuir para o
sustento
de nossa casa". Graças aos bons contatos dos Bioy, ele conseguiu
um emprego numa biblioteca municipal. Foi seu primeiro emprego em tempo
integral. A biblioteca tinha o nome de um escritor popular do século
dezenove, Miguel Cané. Ficava no distrito de Boedo, na calle
Carlos Calvo, perto da avenida La Plata. Era a uma longa distância
de bonde da casa dos Borges e, mesmo depois de saltar, fazia-se necessário
caminhar dez quarteirões.
Em 1937, a biblioteca já funcionava havia
dez anos. Fora inaugurada em novembro de 1927, na presença dos descendentes
de Miguel Cané. Era, apenas, a segunda biblioteca municipal (ou
seja, financiada pelo governo) em Buenos Aires; a primeira era a biblioteca
Manuel Gálvez (batizada em homenagem a outro autor do século
dezenove) na calle San Nicolás, aberta em 1926. A Miguel
Cané começou com uma coleção de 6.500 livros,
que em 1940 havia subido para cerca de 40 mil. Seu diretor era o antigo
poeta ultraísta e colaborador de Proa, Francisco Luis Bernárdez.
Borges foi contratado como primeiro assistente.
Hoje, a fachada da biblioteca é obscurecida
por uma árvore. A alvenaria é atraente, mas cai aos pedaços.
Ao seu lado ficava a Hemeroteca, o arquivo de jornais e revistas; hoje,
é um restaurante de classe.
A biblioteca ainda é municipal, mas está
num estado de abandono chocante. Do lado de dentro, há uma sala
de leitura principal no andar térreo, que fantasticamente contém
apenas cinco livros de Borges - nem sequer um conjunto de Obras completas
entre eles. Uma escadaria à esquerda da entrada leva até
uma galeria com um pequeno piso de madeira, e depois a um outro lance de
escadas que dá para outra sala comprida de leitura. Anexa a esta
sala, há uma série de salas de leitura menores, com estantes
de livros alinhadas, apanhando poeira. Ao fim da sala de leitura, fica
uma porta que dá para outro lance de escadas, que leva ao telhado.
Borges trabalhou aqui de meados de 1937 a agosto
de 1946. Ninguém descreveu melhor sua primeira experiência
de trabalho com bibliotecário do que o próprio empregado.
"Eu recebia duzentos e dez pesos por mês e
mais tarde esse valor aumentou para duzentos e quarenta. Essas eram somas
mais ou menos equivalentes a setenta ou oitenta dólares americanos."
"Na biblioteca, tínhamos muito pouco serviço.
Éramos cerca de cinqüenta, produzindo o que quinze podiam fazer
sem esforço. Meu trabalho em particular, compartilhado com quinze
ou vinte colegas, era classificar e catalogar o acervo da biblioteca, que
até então não estava catalogado. A coleção,
no entanto, era tão pequena, que sabíamos onde encontrar
os livros sem o sistema, portanto o sistema, embora laboriosamente executado,
nunca era necessário ou utilizado. No primeiro dia, trabalhei honestamente.
No seguinte, alguns de meus colegas me chamaram para dizer que eu não
podia fazer aquilo porque ia pô-los em evidência. ‘Além
do mais’, argumentaram, ‘como essa catalogação foi planejada
para nos dar alguma aparência de trabalho, você vai fazer com
que sejamos despedidos.’ Disse-lhes que havia classificado quatrocentos
títulos em vez de cem. ‘Bem, se você continuar assim’, disseram,
‘o chefe vai ficar zangado e não saberá o que fazer conosco.’
Para efeitos de realismo, me disseram que dali em diante eu deveria fazer
oitenta e três livros num dia, noventa no outro e cento e quatro
no terceiro."
"Fiquei na biblioteca por cerca de nove anos. Foram
nove anos de pura infelicidade. No trabalho, os outros homens não
estavam interessados em nada além de corridas de cavalos, partidas
de futebol e histórias obscenas. Certa vez, uma mulher, uma das
leitoras, foi estuprada no caminho para o toalete das senhoras. Todos disseram
que esse tipo de coisa acontecia, já que os banheiros dos homens
e das mulheres eram pegados. Certo dia, duas amigas de certa pose e bem-intencionadas
- damas da sociedade - vieram me ver no trabalho. Telefonaram-me um ou
dois dias depois para dizer: ‘Você pode achar divertido trabalhar
num lugar daqueles, mas nos prometa que irá encontrar pelo menos
um emprego de novecentos pesos, antes do final do mês.’ Dei-lhes
minha palavra de que iria fazer isso. Ironicamente, na época, eu
era um escritor rozoavelmente famoso - a não ser na biblioteca.
Lembro-me de um colega certa vez notando numa enciclopédia o nome
de um certo Jorge Luis Borges - um fato que o fez estranhar a coincidência
de nossos nomes e datas de nascimento idênticos. De vez em quando,
durante aqueles anos, nós, funcionários municipais, éramos
recompensados com um pacote de um quilo de mate, para levarmos para casa.
Às vezes, ao cair da noite, quando eu caminhava os dez quarteirões
até o ponto dos bondes, meus olhos se enchiam de lágrimas.
Aqueles pequenos presentes vindos de cima sempre reforçavam minha
existência simples e esmaecida."
É um retrato comovente e doloroso. Lembra
a história de um garoto chegando a uma escola estranha, para ser
incomodado e humilhado no mesmo instante - assim como Georgie o fora, vinte
antes, na escola da calle Thames, em Palermo. A disparidade entre
as vidas literária e real, um dia bastante pronunciada na calle
Serrano, nunca fora mais aguda.
É possível que uma daquelas amigas
"de certa pose" fosse Elena Udaondo de Pereyra Iraola, e outra Elvira de
Alvear. Ambas eram nomes conhecidos da sociedade, e seus rostos apareciam
com freqüência nas revistas de moda da época. Borges
tomava chá com elas de vez em quando, numa das confeitarias da cidade
feitas para conversas e bebidas amenas. Elvira, oito anos mais nova do
que Borges, de vez em quando ia encontrá-lo, após o trabalho
na biblioteca.
Conheciam-se havia alguns anos; ela era a autora
do volume de poemas para o qual Borges escrevera um curto prefácio,
em 1934. Havia vivido em Paris, no final da década de 20, e fora
amiga de Joyce e Valéry, o que deve ter significado algum valor
literário para Borges. Ela acabou enlouquecendo, e morreu em 1959.
Borges escreveu um poema comovente sobre ela, pouco
após sua morte, lembrando-se de seu sorriso. O interesse de Borges
por ela pode ter sido romântico - o escritor pode ter estado "apaixonado"
por ela, ou fingindo estar. O mais provável era que aquele tipo
de flerte cavalheiresco fosse uma forma de agradar às ambições
sociais de seus pais - em particular Leonor. Mulheres como Elvira eram,
na época, as companhias femininas mais seguras à disposição
de Borges.
As damas não foram bem-sucedidas em sua missão
de elevar o status de Georgie, pois Borges permaneceu na biblioteca. O
relato acima mostra que ele sentia-se superqualificado, de um universo
diferente daquele em que viviam seus colegas, e, além do mais, um
pária. E ficou horrorizado quando um de seus colegas de trabalho
lhe exibiu o peito coberto de cicatrizes, no banheiro dos homens, lembranças
de um macho das lutas de facas.
As mulheres na biblioteca o ignoravam, embora isso
tivesse mudado, quando descobriram as ligações de Borges
com as senhoras "de certa pose" da sociedade, Elvira de Avelar acima de
tudo. Começaram a fofocar sobre como poderiam copiar o estilo dessas
senhoras nas corridas. Borges deve ter pensado que chegara a um inferno
pior do que qualquer coisa já imaginada. Numa entrevista, em que
dá um retrato mais detalhado desses anos do que o ensaio, coloca,
talvez com educação demais:
"Muita gente acreditava que eu era um bom escritor.
Colaborei com a Sur e outras revistas, escritores estrangeiros vinham
para Buenos Aires para me ver como se eu fosse uma pessoa famosa. Mas minha
vida cotidiana não batia com essa suposta fama: era uma vida curiosamente
anônima, irritante." Borges sempre foi adepto de fazer do understatement
uma paródia.
Seu pai morreu poucos meses depois de ele começar
no emprego, em 24 de fevereiro de 1938: "Ele havia sofrido uma longa agonia
e estava muito impaciente por sua morte", observou Borges, sem emoção.
Mas, perder seu pai, a quem adorava - e que havia colocado expectativas
tão altas no futuro de um filho que aparentemente não conseguia
fazer muito mais do que escrever - foi obviamente um fator a mais na depressão
de Borges.
No entanto, a biblioteca Miguel Cané não
implicava apenas desvantagens. A lentidão na classificação
significava que Borges podia se poupar, para ler e escrever. Era o que
fazia, com um evidente senso de rebelião: "Embora meus colegas me
achassem traidor por não partilhar da diversão violenta deles,
prosseguia com meu trabalho próprio, no porão, ou, quando
o tempo estava quente, no telhado." "Diversão violenta’ï provavelmente
também incluiu o estupro que aconteceu um dia perto dos toaletes,
embora no Ensaio não fique claro se o estuprador era um dos
empregados da biblioteca.
Associadas a essa existência triste estavam
algumas leituras impressionantes. No bonde, ele leu A Divina Comédia,
Gibbon, uma enorme história da Argentina, Léon Bloy, Paul
Claudel, Bernard Shaw, o Orlando Furioso, de Ariosto, e sobretudo
Kafka, a quem começara a traduzir, também foram cobertos
nesse período.
De muitas maneiras, os anos da biblioteca foram
extraordinariamente férteis, do ponto de vista intelectual, para
Borges. Ele continuou suas colaborações para El Hogar
- vinte e seis números só em 1938 -, embora tivesse feito
uma pausa na Sur. Seu último artigo para lá, em cinco
meses de 1938, fora sobre Leopoldo Lugones, que cometera suicídio
pouco antes da morte de seu pai.
Essa era uma chance de finalmente negar o ultraísmo,
e elogiar um novo tipo de poesia espanhola formal, a qual ele acabara por
admirar em Lugones. "A essência de Lugones era a forma. Suas razões
quase nunca estavam certas; seus adjetivos e metáforas, quase sempre",
escreveu. O artigo foi ampliado, em Nosotros, no meio do ano: "Dizer
que o principal escritor argentino morreu, dizer que o principal escritor
da língua espanhola morreu, é dizer a mera verdade e dizer
muito pouco".
As opiniões fascistas e católicas
reacionárias de Lugones não seriam apontadas no artigo da
Nosotros;
mas, como ocorre tão freqüentemente com Borges, que estava
muito próximo de Samuel Johnson nesse aspecto, o fim da vida mortal
de um poeta era uma oportunidade para fazer uma elegia do bem imorredouro
de sua obra. Lugones permaneceu importante para ele eternamente.
O AUTOR
O texto acima foi extraído do livro Jorge
Luis Borges: o homem no espelho do livro, de James Woodall (tradução
de Fábio Fernandes, 436 páginas, R$ 49). Publicado pela Bertrand
Brasil, o livro chega às livrarias na próxima semana. Para
escrever a biografia póstuma de Borges - um dos maiores expoentes
da literatura do século 20 - Woodall abordou diferentes ângulos
da vida do escritor. Essa é a primeira biografia escrita em língua
inglesa desde a morte de Borges, em Genebra, em 1986.
Entre outras coisas, o biógrafo mostra no
livro os versos panfletários da juventude do escritor. Revela também
a paixão que é despertada no tímido intelectual justamente
quando atravessava sua melhor fase, escrevendo os contos que lhe dariam
reconhecimento universal. Borges, um homem solitário, dizia que
pensava em si mesmo primeiro como leitor, depois como poeta e só
então como escritor.
Woodall nasceu na Inglaterra e atualmente vive em
Berlim, na Alemanha. Ele escreve sobre literatura, música e teatro
para várias publicações, como The Times, Daily
Telegraph, Observer e a revista GQ, entre outras. O primeiro
livro de Woodall foi escrito em 1992, e tinha como assunto a dança
flamenca.