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Jorge Luís Borges

Jornal do Brasil, Idéias,
Sábado, 23 de janeiro de 1999 
 

    Borges na biblioteca 

    Biógrafo do escritor argentino relembra o período, no fim dos anos 30, em que trabalhou em um órgão municipal em Buenos Aires, cercado por funcionários públicos que não conheciam suas obras e pela grande paixão da sua vida: os livros 

    INÉDITO

    JAMES WOODALL

     Em 1937, Jorge (Nota da Redação: Jorge Guillermo Borges, pai de Jorge Luis Borges) estava perdendo as forças. Estava cego, e já vinha assim há anos; mas sua deficiência cardíaca havia agora minado sua saúde e bem-estar. Aos sessenta e quatro anos, ele era uma figura triste e frustrada, que ficava sentado por horas em silêncio, olhando para o nada. O tempo de Leonor (NR: mãe de Jorge Luis Borges) era ocupado quase exclusivamente por ele - à exceção das necessidades abstêmias de seu filho - e a morte de seu marido seria, acima de tudo, um alívio bem-vindo para Jorge. Ele disse, e seu filho sempre se lembraria disso, "Quiero morir enteramente" - "Quero morrer inteiro" - em outras palavras, em pleno juízo.

     Borges, como ele mesmo disse, "há muito havia passado da idade em que deveria ter começado a contribuir para o sustento de nossa casa". Graças aos bons contatos dos Bioy, ele conseguiu um emprego numa biblioteca municipal. Foi seu primeiro emprego em tempo integral. A biblioteca tinha o nome de um escritor popular do século dezenove, Miguel Cané. Ficava no distrito de Boedo, na calle Carlos Calvo, perto da avenida La Plata. Era a uma longa distância de bonde da casa dos Borges e, mesmo depois de saltar, fazia-se necessário caminhar dez quarteirões.

     Em 1937, a biblioteca já funcionava havia dez anos. Fora inaugurada em novembro de 1927, na presença dos descendentes de Miguel Cané. Era, apenas, a segunda biblioteca municipal (ou seja, financiada pelo governo) em Buenos Aires; a primeira era a biblioteca Manuel Gálvez (batizada em homenagem a outro autor do século dezenove) na calle San Nicolás, aberta em 1926. A Miguel Cané começou com uma coleção de 6.500 livros, que em 1940 havia subido para cerca de 40 mil. Seu diretor era o antigo poeta ultraísta e colaborador de Proa, Francisco Luis Bernárdez. Borges foi contratado como primeiro assistente.

     Hoje, a fachada da biblioteca é obscurecida por uma árvore. A alvenaria é atraente, mas cai aos pedaços. Ao seu lado ficava a Hemeroteca, o arquivo de jornais e revistas; hoje, é um restaurante de classe.

     A biblioteca ainda é municipal, mas está num estado de abandono chocante. Do lado de dentro, há uma sala de leitura principal no andar térreo, que fantasticamente contém apenas cinco livros de Borges - nem sequer um conjunto de Obras completas entre eles. Uma escadaria à esquerda da entrada leva até uma galeria com um pequeno piso de madeira, e depois a um outro lance de escadas que dá para outra sala comprida de leitura. Anexa a esta sala, há uma série de salas de leitura menores, com estantes de livros alinhadas, apanhando poeira. Ao fim da sala de leitura, fica uma porta que dá para outro lance de escadas, que leva ao telhado.

     Borges trabalhou aqui de meados de 1937 a agosto de 1946. Ninguém descreveu melhor sua primeira experiência de trabalho com bibliotecário do que o próprio empregado.

     "Eu recebia duzentos e dez pesos por mês e mais tarde esse valor aumentou para duzentos e quarenta. Essas eram somas mais ou menos equivalentes a setenta ou oitenta dólares americanos."

     "Na biblioteca, tínhamos muito pouco serviço. Éramos cerca de cinqüenta, produzindo o que quinze podiam fazer sem esforço. Meu trabalho em particular, compartilhado com quinze ou vinte colegas, era classificar e catalogar o acervo da biblioteca, que até então não estava catalogado. A coleção, no entanto, era tão pequena, que sabíamos onde encontrar os livros sem o sistema, portanto o sistema, embora laboriosamente executado, nunca era necessário ou utilizado. No primeiro dia, trabalhei honestamente. No seguinte, alguns de meus colegas me chamaram para dizer que eu não podia fazer aquilo porque ia pô-los em evidência. ‘Além do mais’, argumentaram, ‘como essa catalogação foi planejada para nos dar alguma aparência de trabalho, você vai fazer com que sejamos despedidos.’ Disse-lhes que havia classificado quatrocentos títulos em vez de cem. ‘Bem, se você continuar assim’, disseram, ‘o chefe vai ficar zangado e não saberá o que fazer conosco.’ Para efeitos de realismo, me disseram que dali em diante eu deveria fazer oitenta e três livros num dia, noventa no outro e cento e quatro no terceiro."

     "Fiquei na biblioteca por cerca de nove anos. Foram nove anos de pura infelicidade. No trabalho, os outros homens não estavam interessados em nada além de corridas de cavalos, partidas de futebol e histórias obscenas. Certa vez, uma mulher, uma das leitoras, foi estuprada no caminho para o toalete das senhoras. Todos disseram que esse tipo de coisa acontecia, já que os banheiros dos homens e das mulheres eram pegados. Certo dia, duas amigas de certa pose e bem-intencionadas - damas da sociedade - vieram me ver no trabalho. Telefonaram-me um ou dois dias depois para dizer: ‘Você pode achar divertido trabalhar num lugar daqueles, mas nos prometa que irá encontrar pelo menos um emprego de novecentos pesos, antes do final do mês.’ Dei-lhes minha palavra de que iria fazer isso. Ironicamente, na época, eu era um escritor rozoavelmente famoso - a não ser na biblioteca. Lembro-me de um colega certa vez notando numa enciclopédia o nome de um certo Jorge Luis Borges - um fato que o fez estranhar a coincidência de nossos nomes e datas de nascimento idênticos. De vez em quando, durante aqueles anos, nós, funcionários municipais, éramos recompensados com um pacote de um quilo de mate, para levarmos para casa. Às vezes, ao cair da noite, quando eu caminhava os dez quarteirões até o ponto dos bondes, meus olhos se enchiam de lágrimas. Aqueles pequenos presentes vindos de cima sempre reforçavam minha existência simples e esmaecida."

     É um retrato comovente e doloroso. Lembra a história de um garoto chegando a uma escola estranha, para ser incomodado e humilhado no mesmo instante - assim como Georgie o fora, vinte antes, na escola da calle Thames, em Palermo. A disparidade entre as vidas literária e real, um dia bastante pronunciada na calle Serrano, nunca fora mais aguda.

     É possível que uma daquelas amigas "de certa pose" fosse Elena Udaondo de Pereyra Iraola, e outra Elvira de Alvear. Ambas eram nomes conhecidos da sociedade, e seus rostos apareciam com freqüência nas revistas de moda da época. Borges tomava chá com elas de vez em quando, numa das confeitarias da cidade feitas para conversas e bebidas amenas. Elvira, oito anos mais nova do que Borges, de vez em quando ia encontrá-lo, após o trabalho na biblioteca.

     Conheciam-se havia alguns anos; ela era a autora do volume de poemas para o qual Borges escrevera um curto prefácio, em 1934. Havia vivido em Paris, no final da década de 20, e fora amiga de Joyce e Valéry, o que deve ter significado algum valor literário para Borges. Ela acabou enlouquecendo, e morreu em 1959.

     Borges escreveu um poema comovente sobre ela, pouco após sua morte, lembrando-se de seu sorriso. O interesse de Borges por ela pode ter sido romântico - o escritor pode ter estado "apaixonado" por ela, ou fingindo estar. O mais provável era que aquele tipo de flerte cavalheiresco fosse uma forma de agradar às ambições sociais de seus pais - em particular Leonor. Mulheres como Elvira eram, na época, as companhias femininas mais seguras à disposição de Borges.

     As damas não foram bem-sucedidas em sua missão de elevar o status de Georgie, pois Borges permaneceu na biblioteca. O relato acima mostra que ele sentia-se superqualificado, de um universo diferente daquele em que viviam seus colegas, e, além do mais, um pária. E ficou horrorizado quando um de seus colegas de trabalho lhe exibiu o peito coberto de cicatrizes, no banheiro dos homens, lembranças de um macho das lutas de facas.

     As mulheres na biblioteca o ignoravam, embora isso tivesse mudado, quando descobriram as ligações de Borges com as senhoras "de certa pose" da sociedade, Elvira de Avelar acima de tudo. Começaram a fofocar sobre como poderiam copiar o estilo dessas senhoras nas corridas. Borges deve ter pensado que chegara a um inferno pior do que qualquer coisa já imaginada. Numa entrevista, em que dá um retrato mais detalhado desses anos do que o ensaio, coloca, talvez com educação demais:

     "Muita gente acreditava que eu era um bom escritor. Colaborei com a Sur e outras revistas, escritores estrangeiros vinham para Buenos Aires para me ver como se eu fosse uma pessoa famosa. Mas minha vida cotidiana não batia com essa suposta fama: era uma vida curiosamente anônima, irritante." Borges sempre foi adepto de fazer do understatement uma paródia.

     Seu pai morreu poucos meses depois de ele começar no emprego, em 24 de fevereiro de 1938: "Ele havia sofrido uma longa agonia e estava muito impaciente por sua morte", observou Borges, sem emoção. Mas, perder seu pai, a quem adorava - e que havia colocado expectativas tão altas no futuro de um filho que aparentemente não conseguia fazer muito mais do que escrever - foi obviamente um fator a mais na depressão de Borges.

     No entanto, a biblioteca Miguel Cané não implicava apenas desvantagens. A lentidão na classificação significava que Borges podia se poupar, para ler e escrever. Era o que fazia, com um evidente senso de rebelião: "Embora meus colegas me achassem traidor por não partilhar da diversão violenta deles, prosseguia com meu trabalho próprio, no porão, ou, quando o tempo estava quente, no telhado." "Diversão violenta’ï provavelmente também incluiu o estupro que aconteceu um dia perto dos toaletes, embora no Ensaio não fique claro se o estuprador era um dos empregados da biblioteca.

     Associadas a essa existência triste estavam algumas leituras impressionantes. No bonde, ele leu A Divina Comédia, Gibbon, uma enorme história da Argentina, Léon Bloy, Paul Claudel, Bernard Shaw, o Orlando Furioso, de Ariosto, e sobretudo Kafka, a quem começara a traduzir, também foram cobertos nesse período.

     De muitas maneiras, os anos da biblioteca foram extraordinariamente férteis, do ponto de vista intelectual, para Borges. Ele continuou suas colaborações para El Hogar - vinte e seis números só em 1938 -, embora tivesse feito uma pausa na Sur. Seu último artigo para lá, em cinco meses de 1938, fora sobre Leopoldo Lugones, que cometera suicídio pouco antes da morte de seu pai.

     Essa era uma chance de finalmente negar o ultraísmo, e elogiar um novo tipo de poesia espanhola formal, a qual ele acabara por admirar em Lugones. "A essência de Lugones era a forma. Suas razões quase nunca estavam certas; seus adjetivos e metáforas, quase sempre", escreveu. O artigo foi ampliado, em Nosotros, no meio do ano: "Dizer que o principal escritor argentino morreu, dizer que o principal escritor da língua espanhola morreu, é dizer a mera verdade e dizer muito pouco".

     As opiniões fascistas e católicas reacionárias de Lugones não seriam apontadas no artigo da Nosotros; mas, como ocorre tão freqüentemente com Borges, que estava muito próximo de Samuel Johnson nesse aspecto, o fim da vida mortal de um poeta era uma oportunidade para fazer uma elegia do bem imorredouro de sua obra. Lugones permaneceu importante para ele eternamente.

     O AUTOR

     O texto acima foi extraído do livro Jorge Luis Borges: o homem no espelho do livro, de James Woodall (tradução de Fábio Fernandes, 436 páginas, R$ 49). Publicado pela Bertrand Brasil, o livro chega às livrarias na próxima semana. Para escrever a biografia póstuma de Borges - um dos maiores expoentes da literatura do século 20 - Woodall abordou diferentes ângulos da vida do escritor. Essa é a primeira biografia escrita em língua inglesa desde a morte de Borges, em Genebra, em 1986.

     Entre outras coisas, o biógrafo mostra no livro os versos panfletários da juventude do escritor. Revela também a paixão que é despertada no tímido intelectual justamente quando atravessava sua melhor fase, escrevendo os contos que lhe dariam reconhecimento universal. Borges, um homem solitário, dizia que pensava em si mesmo primeiro como leitor, depois como poeta e só então como escritor.

     Woodall nasceu na Inglaterra e atualmente vive em Berlim, na Alemanha. Ele escreve sobre literatura, música e teatro para várias publicações, como The Times, Daily Telegraph, Observer e a revista GQ, entre outras. O primeiro livro de Woodall foi escrito em 1992, e tinha como assunto a dança flamenca.


 










Programação visual, 23.01.1999: SF