Jorge Luís Borges
Escrita atemporal
30/01/99 - Jornal A Tarde, Salvador, BA
Jorge Luís Borges
Conheci a obra de Franz Kafka em 1917 e agora confesso que fui indigno
da obra de Franz Kafka. Eu o li em uma revista expressionista, profissionalmente
moderna, que havia se consagrado a inventar a falta de pontuação;
a falta de rimas, a falta de maiúsculas e o abuso de metáforas
simuladas e aparatosas palavras compostas próprias dos jovens desse
tempo e talvez dos jovens de todos os tempos. Entre esse estalido impresso,
figurava um apólogo, contraposto à corrente, que levava a
assistência de Franz Kafka e que considerei inexplicavelmente insípido.
Recordo que li uma fábula sua, escrita de maneira simples, e me
apareceu incompreensível sua publicação. Passei frente
à revelação e não a percebi. Também
devo confessar que aderia plenamente a este estilo barroco e que buscava
imitá-lo. Mais tarde seus livros chegaram às minhas mãos
é então me dei conta da minha insensibilidade e do meu erro
imperdoável.
A grandeza de Kafka é evidente e seu gênio indiscutível.
É o escritor menos controvertido deste século e talvez o
primeiro, ainda que em nada, ou quase nada, se pareça a este século.
A leitura de outros escritores nos leva a pensar na época em que
escreveram. Se tomamos o caso de Shakespeare, temos que pensar continuamente
que escreveu para o palco e não para a leitura; temos que pensar
na política, na decadência da Espanha, da Armada Invencível.
Se tomamos o caso de Dante, não podemos esquecer sua teologia nem
seu amor por Virgílio. Se tomamos o caso de Walt Whitman, não
podemos prescindir do sonho da democracia que professava. Tampouco podemos
ler Hugo sem nos afastarmos da história da França. Kafka
é uma exceção a essa regra tão comum na história
da literatura. É um escritor a quem podemos ler atemporalmente.
Kafka nasceu em Praga, é de origem judia, é boêmio,
mas não se sente tchecoslovaco. Vive e sofre as conseqüências
da Primeira Guerra Mundial, mas nada disso se reflete em sua obra. Seu
trabalho poderia ser definido como uma parábola ou uma série
de parábolas, cujo tema central é a relação
moral do indivíduo com a divindade e com o universo. Kafka via sua
obra como um ato de fé e não buscava através dela
desalentar os homens.
Surgiu e morreu como um clássico no que se refere ao formal.
Quanto ao conteúdo, recordo que meu amigo, o poeta Carlos Mastronardi,
me disse uma vez que no final das contas Kafka não havia feito outra
coisa a não ser renovar o paradoxo de Zenão de Eléia:
uma flecha não pode chegar a sua meta porque antes tem que passar
por um ponto intermediário, antes por outro ponto intermediário,
e assim sucessivamente temos um número infinito de pontos onde a
flecha em cada momento está imóvel no ar, e somando imobilidades
não se chega nunca ao movimento. Curiosamente, descobri depois uma
versão chinesa desse mesmo paradoxo. Está no livro de Chuang
Tzu e é a história dos reis de Ian. Supõe-se que cada
rei, ao morrer, rompe o cetro e entrega a metade restante a seu sucessor;
o sucessor faz o mesmo e por isso a dinastia é infinita. No caso
de Kafka, podemos pensar que um de seus temas é a infinita postergação.
Essa postergação está sentida de um modo patético,
e nisso radica a suprema novidade de Kafka, tomar esse tema que antes havia
sido um tema das matemáticas e levá-lo a uma expressão
da vida.
Um remoto imperador, infinitamente remoto no tempo e no espaço,
faz com que infinitas gerações levantem um muro infinito
que dê a volta em seu império infinito para deter o curso
de exércitos infinitamente distantes.
Como Virgílio, que a ponto de morrer encarregou seus amigos
de reduzir a cinzas o manuscrito inconcluso da Eneida, Franz Kafka encomendou
a Max Brod a destruição dos romances e narrativas que asseguravam
sua fama. A afinidade destes ilustres episódios é, se não
me engano, ilusória. O delicado Virgílio não podia
ignorar que contava com a piedosa desobediência de seus amigos: o
obsessivo Kafka, com a de Brod. No mais, o autor que realmente deseja a
desaparição de sua obra não encomenda essa tarefa
a outro. Sem dúvida Virgílio e Kafka não desejavam
profundamente a destruição de seus escritos: só queriam
desligar-se da responsabilidade que uma obra sempre nos impõe. Kafka,
como Chesterton, teria preferido a redação de páginas
felizes, mas sua fidelidade não condescendeu em escrevê-las.
1883-1924. Estas duas datas delimitam a vida de Franz Kafka. Ninguém
pode ignorar que ele foi marcado por importantes acontecimentos históricos:
a Primeira Guerra mundial, a invasão da Bélgica, as derrotas
e as vitórias, o bloqueio dos impérios centrais pela frota
britânica, os anos de fome, a revolução russa, que
foi portadora de uma generosa esperança e que é hoje o imperialismo,
o degelo, o tratado de Brest-Litoskv e o tratado de Versailles que engendrou
a Segunda Guerra Mundial.
Ele foi igualmente marcado por uma série de fatos íntimos
observados na biografia que Max Brod escreveu: os desentendimentos com
o pai, a solidão, os estudos de Direito, as horas no escritório,
a profusão de manuscritos, a tuberculose. E também as grandes
aventuras barrocas da literatura: o expressionismo alemão, as proezas
verbais de Johannes Becher, de William Yeats e de James Joyce.
O destino de Kafka consiste em transformar os acontecimentos e as agonias
em fábulas. Narra pesadelos sórdidos em um estilo límpido.
E não deixa de ser notável que ele tenha sido leitor das
Escrituras e admirador fervoroso de Flaubert, de Goethe e de Swift.
Ele era judeu, mas a palavra judeu, se bem me lembro, não figura
em seus escritos – que são intemporais e, desta maneira, eternos.
Kafka é o maior escritor clássico deste tumultuado e estranho
século.
Escritor e poeta argentino, Jorge Luis Borges (1899-1986) publicou
Ficções, O Aleph, História Universal da Infâmia,
Informe de Brodie (contos) e Fervor de Buenos Aires (poesia), dentre outros;
texto escrito por ocasião do centenário de nascimento de
Franz Kafka. (Folha de São Paulo, 10.12.83).
A propósito, um poeminha de Borges sobre Kafka
La Moneda de Hierro
En: Traum
Lo sabían los tres.
Ella era la compañera de Kafka.
Kafka la habia soñado.
Lo sabían los tres.
Él era el amigo de Kafka.
Kafka lo habia soñado.
Lo sabian los tres.
La mujer le dijo al amigo:
Quiero que esta noche me quieras.
Lo sabían los tres.
El hombre le contestó: Si pecamos,
Kafka dejará de soñarnos.
Uno lo supo.
No había nadie más en la tierra.
Kafka se dijo:
Ahora que se fueran los dos, he quedado solo.
Dejaré de soñarme.
Enviado por
Maria Alice Vila Fabião" <alicevilafabiao@mail.telepac.pt>
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