Jorge Luís Borges
Borges vive e escreve cada
vez melhor
José Nêumanne
James Woodall mostra, numa
biografia modesta, que Borges não viveu o que escreveu, mas escreveu
o que viveu, como qualquer outro
Algumas maldições
pesaram sobre a cabeça do argentino Jorge Luís Borges, enquanto
ele viveu. O Prêmio Nobel de Literatura, que tantas vezes tirou de
um justo anonimato escritores muito menos dotados, lhe foi negado por causa
de seu anarquismo, interpretado como fascismo pela esquerda dominante nos
meios intelectuais e universitários. Esse anarquismo, aliás,
não passava do desdobramento de sua pinimba pessoal com o caudilho
Juan Domingo Perón, protetor dos “descamisados”, e do desprezo que
os intelectuais pobres, mas com veleidades aristocráticas, devotam,
geral e sensatamente, à atividade política. “A civilização
ideal”, disse-me, em 1985, “é aquela que tem governos que não
aparecem”.
Por causa dessa incorreção
política, o escritor foi anatemizado e se tornou uma espécie
de pária sem pátria. Mesmo porque a Argentina, a quarta economia
do planeta na virada do século, época de sua infância
e adolescência, se tornou, ao longo do tempo, um pobre país
de terceiro mundo. Quando Borges chegou à velhice, seu país
tinha perdido até a hegemonia no Cone Sul da América Latina
para o Brasil.
Outra maldição,
menos pesada, mas nem por isso menos falsa, foi a de que sua obra não
abordava assuntos sociais, mas labirintos, espelhos e tigres, temas muito
distantes da miséria real de seu continente. A verdade é
que a cegueira progressiva pode tê-lo levado a olhar mais para dentro
de si mesmo. Mas, se percorreu corredores de bibliotecas e saguões
de museus, esse olhar para dentro também descortinou cenas de sangue
nos subúrbios da cidade de sua adolescência, das brigas de
faca e das paixões sem freios. As ruas, o primeiro poema do primeiro
livro que publicou, Fervor de Buenos Aires, de 1923, começava assim:
“As ruas de Buenos Aires / já são minhas entranhas”.
Para compensar essas duas
maldições, o autor da História Universal da Infâmia
teve no crítico Emir Rodríguez Monegal um apóstolo
talentoso e fiel. Poucos autores terão sido abençoados com
uma exegese tão monumental, tão completa e ao mesmo tempo
tão parcial de sua obra como a que o discípulo uruguaio escreveu
sobre o mestre portenho. Só que a autoridade com que o biógrafo
descreveu o biografado pode ter sido a principal responsável pela
cristalização de um equívoco mítico sobre o
escritor. Como a mais autorizada narrativa de sua vida era uma biografia
literária, a seita de seus admiradores, antes quase secretos, depois
numerosos e exibicionistas, passou a cultivar a idéia de que, na
verdade, o autor viveu seus contos. Teria feito assim a trajetória
inversa da seguida por outros escritores, cujos textos reproduzem retalhos
de sua vivência pessoal ou da experiência coletiva de seus
próximos.
O inglês James Woodall
não teve o topete de tentar se ombrear com Rodríguez Monegal,
muito embora tenha ensaiado alguns reparos a sua obra máxima. Mas,
ao escrever O Homem no Espelho do Livro (Bertrand Brasil, 420 pp., R$ 49,00),
cujo resultado crítico é ínfimo, se comparado com
o obtido pela grande biografia literária, ele deu a seu leitor a
oportunidade ímpar de descobrir que, ao contrário do que
propagou o mito, Borges não viveu o que escreveu, mas, como qualquer
outro, escreveu o que viveu, como, aliás, revelou explicitamente
num verso: “Só uma coisa não há. É o esquecimento”.
Ou seja, se em Jorge Luís
Borges: Uma Biografia Literária, Rodríguez Monegal registrou
a verdadeira dimensão do escritor, James Woodall lhe recuperou a
natureza humana. Uma das poucas citações que este faz da
obra poética do biografado é a confissão feita no
poema O Remordimento: “Cometi o pior dos pecados / que um homem pode cometer.
Não fui / feliz”.
Não é que
Woodall tenha feito alguma revelação absolutamente inédita.
Aborda, por exemplo, a dificuldade do biografado de se relacionar com as
mulheres e deixa claro que ele não teve vida sexual com as duas
com as quais casou. Mas isso chegou a ser explorado antes, e de forma até
grotesca. Lembro-me de ter visto reproduzido numa revista humorística
portenha um livro com páginas totalmente em branco e o título
A vida sexual de J. L. Borges. Mas de todas as maldições
com que conviveu, decerto a falta de sexo não foi a que mais o incomodou.
Não era segredo para
ninguém que a erudição do devorador de enciclopédias
tinha como contrapartida a absoluta ingenuidade no trato com os seres humanos
em geral e os do sexo feminino em particular. James Woodall listou as admiradoras
e ex-alunas do gênio que tiveram a graça de alguma parceria
literária insignificante com ele. Talvez ele não fosse assim
apenas por ingenuidade, mas também para mostrar de alguma forma
que aquele talento reconhecido no mundo inteiro de iludir o leitor com
uma mistura de fantasia e informação não passava de
um truque comum ao alcance da ponta de seus dedos e na velocidade que lhe
aprouvesse. Neto de inglesa, ele se orgulhava muito de seu peculiar sense
of humour.
De qualquer maneira, essas
parcerias beirando o apócrifo produziram um folclore digno de nota.
Há algum tempo, circulou quase clandestinamente no Brasil um poema
chamado Instantes, que lhe era atribuído. A autoria não resistiria
a uma análise crítica criteriosa, mas seu nome foi associado
à peça literária sem valor nenhum e ganhou o tom de
mensagem de amor à vida. Ninguém em pleno domínio
das faculdades mentais imaginaria que o mestre fosse capaz de versos cafonas
como: “Se pudesse voltar a viver / começaria a andar descalco no
começo da primavera”. Talvez o próprio Borges risse, se recebesse
um cartão de Natal com o pobre poema que algum anônimo associou
a seu nome, então já uma grife.
Essa mitologia também
ajudou seus interlocutores a sentirem o que se pode definir como uma “atmosfera
borgiana” em seus encontros com o escritor. Um colega jornalista, Luís
Cláudio Latgé, conversou logamente com um freqüentador
da barbearia do Hotel Plaza e, somente depois que o barbeiro lhe retirou
as toalhas quentes do rosto recém-barbeado, percebeu que a voz ao
alcance de seu ouvido pertencia ao autor de Ficções.
Eu mesmo não escapei
desse encantamento nos dois contatos pessoais que mantive com ele, um pelo
telefone e outro em sua casa, em Buenos Aires. Ao telefone, Borges contou-me
um assassínio que teria visto em território brasileiro, na
fronteira argentina. Em casa, depois, falou-me longamente da impressão
que lhe causaram o presidente Tancredo Neves, que morrera havia pouco,
e um agradável passeio de balão na Califórnia.
Na conversa, aconselhou-me
a parar de ler e dedicar-me apenas à releitura. “A imprensa”, disse-me,
“é uma invenção maligna. Antes, nos tempos dos manuscritos,
os escritores eram mais seletivos e seletos. Só vinham à
luz textos iluminados. Depois da imprensa, ficou fácil demais publicar
um livro”. E tornou o conceito uma receita. “Só vale a pena reler
Conrad”, cochichou em tom cúmplice, referindo-se ao polonês
que se tornou um grande prosador em inglês, talvez seu sonho secreto,
e serviu de título a um de seus poemas de juventude. Depois de uma
pausa, lembrou-se: “E Euclides da Cunha”. Quando lhe perguntei se lia bem
português, respondeu-me que não. “Eu leio bem Euclides”, cortou,
impaciente, quase rispidamente.
De certa forma, a biografia
plana e sem segredos do inglês desvenda as origens desse mistério
que seus fãs adoravam. Todos chegavam (chegávamos) até
ele encharcados até os ossos de sua prosa mágica e se sentiam
(nos sentíamos) muito honrados por ele ter permitido o acesso a
seu universo particular. Woodall apenas encadeia os fatos de sua vida para
mostrar que esse cenário, que parecia fora do chão, se situava,
de fato, nas ruas de Buenos Aires e de Genebra, as duas cidades às
quais se ligou, a primeira pelo nascimento e a segunda escolhida para o
local do passamento. “Como somos todos analfabetos em Buenos Aires, pensamos
que tudo aquilo era invenção dele”, escreveu-me um amigo
de infância, Bráulio Tavares, experto no gênio. Borges
mesmo não descarta essa possibilidade, pois deixou registrado num
poema, escrito em plena velhice desiludida com a pátria: “nasci
em outra cidade que também se chamava Buenos Aires”.
Jorge Luís Borges,
o Georgie amado de Leonor, sua mãe, cuja beleza juvenil povoava
as paredes do austero apartamento onde os dois viveram em comunhão
quase absoluta por quase toda a vida de ambos na rua Maipu, perto da tradicional
Plaza San Martin e a um quarteirão da rua Florida, templo do consumismo
portenho, era uma espécie de monge. Além do voto de castidade,
que abraçou desde o dia em que seu pai, também Jorge, também
cego na maturidade, como, aliás, outros ascendentes em linha reta,
determinou como sendo o de sua iniciação sexual com uma prostituta
(provavelmente amante de Jorge pai), fez o da pobreza. Fani, a velha criada,
era o único luxo de seu lar de classe média baixa, onde o
jornalista brasileiro Flávio Tavares o viu certa vez comendo flocos
de cereais secos, sem leite nem água. Essa imagem certamente teria
encantado outro velho bruxo, o cineasta espanhol Luís Buñuel,
que era surdo e detestava cegos em geral e em particular JLB, de quem desprezava,
sobretudo, a ansiedade anual às vésperas do anúncio
do Nobel.
A biografia de Woodall não
é ainda a definitiva e ele mesmo reconhece isso, ao espalhar pistas,
borgianamente, no capítulo final sobre tesouros manuscritos espalhados
pelo mundo e guardados ciumentamente por gente mesquinha em busca de fortuna
fácil ou estranha querendo guardar sigilo sobre algum enigma ou
charada que não dá mais para decifrar. Esta é mais
uma redução do mito etéreo Borges à vida real.
Como os tangos (“o tango cria um turvo / passado irreal que de algum modo
é certo, / a lembrança impossível de haver morrido
/ numa esquina do subúrbio”, escreveu ele), cujas letras falam das
mesmas vinganças e juras de morte e de amor que lhe serviram de
temas aos textos, sua prosa ainda vive.
Mais do que isso, aquele
seu jeito gaiato de misturar ensaio e mentira pode ser ele mesmo o princípio
da literatura do futuro. Assim, é possível dizer dele o que
se diz de Carlos Gardel: mesmo morto e enterrado na Suíça,
Borges, o milongueiro da prosa, anda escrevendo cada vez melhor.
José Nêumanne,
jornalista, poeta e escritor, é editorialista do “Jornal da Tarde”
[in Jornal da Tarde, 23.01.1999]
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