José Lins do Rego Bio-bibliografia (3.6.1901-12.12.1957) Crítica & ensaio, centenário de José Lins do Rego |
Maravilhoso mundo jovem açucareiro
Mário Maestri
O “Ciclo da Cana-de-açúcar” é contemporâneo de outro monumento literário nacional: Casa grande & senzala, a tese sociológica de Gilberto Freyre sobre a sociedade açucareira escravista nordestina, de 1933. Dez anos antes, em 1923, José Lins do Rego conhecera o ínclito pernambucano, que exerceu sobre ele imediata e profunda influência intelectual, como o próprio ficcionista declarou. As grandes teses de
Gilberto Freyre sobre o caráter patriarcal da sociedade escravista
nordestina teriam verdadeira tradução literária nas
obras do romancista paraibano. Porém, seria um crasso erro explicar
o “Ciclo da Cana-de-açúcar” como desdobramento ficcional
das visões do afamado sociólogo. É certamente mais
correto dizer que os dois mestres, na mesma época, com igual genialidade
e semelhantes visões de mundo, abeberaram-se em um mesmo manancial.
Apenas nesse quadro mais geral é possível compreender as
eventuais inter-influências dos autores.
Paradoxalmente, neste
2001, quando José Lins completaria 100 anos e Gilberto Freyre 101,
podemos constatar que as duas leituras do passado, paridas praticamente
na mesma época, envelheceram em forma desigual. Enquanto Casa-grande
& senzala perde terreno como análise científica da gênese
da sociedade açucareira, a obra de José Lins cresce como
registro, também histórico e sociológico, da crise
daquele universo! Realidade que reforça as identidades e desigualdades
da literatura ficcional e das ciências sociais.
Seguindo a grande
tese de Gilberto Freyre, José Lins descreve uma sociedade açucareira
dominada pelas relações patriarcais entre amos e trabalhadores,
moleques negros e meninos brancos. Como o sociólogo consagrado,
apresenta um mundo onde o próprio intercurso sexual estabelece intimidade
que aproximaria senhores e servos. Entretanto, ao encenar ficcionalmente
a tese da complementaridade assimétrica da sociedade açucareira,
desvela na trivialidade dos atos quotidianos um mundo alicerçado
na violência e desprezo dos senhores para com os subalternos. Aqui
também, para imitar a vida, a arte exigiu ao narrador dois passos
além da vontade explícita do autor.
O menino Carlinhos
vai ao Colégio - Doidinho - e, jovem advogado, volta para assistir
à decadência física do avô, relatada em Bangüê.
Enquanto a modernidade das usinas devorava inexoravelmente os agora arcaicos
engenhos, os anos carcomiam sem dó aquele homem que já fora
um colosso. Em Bangüê, a morte do velho - personagem-síntese
da classe dos engenheiros - é pranteada pelos trabalhadores do engenho
Santa Rosa. O transpasso do velho e a ascensão do neto ao mando
do engenho permitem que prossiga o emocionado elogio à classe senhorial
em extinção, como o fez igualmente Gilberto Freyre, em Casa-grande
& senzala.
Em O moleque Ricardo, primeiro romance na terceira pessoa, retira-se o melhor rebento da bagaceira para alçá-lo à condição de proletário, cotejando-se assim o mundo material e espiritual do operário de engenho ao da fábrica. É a narrativa ficcional repetindo a tese da sociologia e das elites nordestinas, segundo a qual a sorte do “alugado” do eito vencia por bem mais do que um focinho a de “assalariado” urbano. Porém, de certo modo, a volta do moleque Ricardo ao engenho, do qual fugira aos 16 anos, registra que o caminho abandonado já era o único possível a ser seguido. Em Santa Rosa, o trabalhador
urbano fracassado tenta inutilmente ressuscitar um mundo que pertencia
ao passado. O doutor Juca, o mais dinâmico, preparado e cúpido
descendente de Zé Paulino, transformara o bangüê em usina.
Agora, as novas máquinas infernais, com seus ritmos insanos, devoravam
insensíveis canas, homens, hábitos e valores. Era a cidade
chegando ao campo! Devoram até mesmo o executor da metamorfose,
o engenheiro Juca que se reciclara, apenas parcialmente, em usineiro. Era
o fim de todo um mundo.
Enquanto o sociólogo pernambucano olhava nostálgico da janela da casa-grande os negros e negras curvados pelo trabalho, o ficcionista paraibano devolvia-lhes o nome, a carne e a alma, ao ir ao encontro e misturar-se gostosamente com eles na cozinha, engenho e eito. Desabusando José Lins do Rego, o menino arteiro que abriu o ciclo magnífico continua ainda hoje levando os leitores pela mão aos mais profundos recônditos do bangüê que Gilberto Freyre e seu avô Zé Paulino mantiveram com sucesso velados aos olhos curiosos dos estranhos. Mário Maestri é professor universitário e escritor; autor, entre outros de A segunda morte de Castro Alves: genealogia de um revisionismo, 1999. maestri@via-rs.net.com in A Tarde,
Salvador, 30.06.01 |
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Hélio Pólvora Na passagem do centenário de nascimento de José Lins do Rego (3.6.1901-12.12.1957), é quase fatal o retorno do velho debate sobre regionalismo literário - uma vertente da ficção ainda hoje alvo de certo preconceito. É que José Lins encarnou bem a psicogênese de uma região - os vales paraibanos e pernambucanos da cana-de-açúcar - e exprimiu-se, ademais, em linguagem popular marcada pela oralidade. Foi ele o criador do “Ciclo da Cana-de-Açúcar”, que abrangeu apenas os cinco primeiros romances, de Menino de Engenho a Usina, e não tardou a sair das capas e folhas-de-rosto de seus livros. Àquele ciclo sobre a decadência dos engenhos corresponderam os “romances da Bahia”, de Jorge Amado, também de forte tintura localista. O ficcionismo brasileiro desdobrava-se, então, em pleno pós-modernismo de 30, nas documentações sociais de origem geográfica, projetadas pelo prisma do imaginário que se abeberava na memória. O sertanismo viera, naturalmente, de José de Alencar, que havia lançado os fundamentos de uma prosa de ficção “nacional”, em oposição àquela outra, de teor urbano, imitativa dos modelos estrangeiros de estruturação e temática, e deixou-nos um panfleto elucidativo, Como e Porque Sou Romancista. A dicotomia ficção regionalista/ficção urbana prosseguiu por muitos decênios e só viria a esfumar-se recentemente, quando os meios de comunicação de massa transformaram as ilhas culturais brasileiras em arquipélagos e com estes costuraram o continente. Mesmo assim, não falta quem ainda queira atrelar o regionalismo à crônica de costumes, ao folclore, ao caipirismo ou aos relatos do tipo denúncia social. Machado de Assis previu, em 1873, no ensaio Instinto e Nacionalidade, a fusão daquela dicotomia, ao testemunhar: “Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade, abono do futuro”. A escrita como arte de aferir conflitos de personalidade e os conflitos desta com o meio advêm da transição do romantismo para o realismo, em oposição a uma literatura sem insight psicossocial, presa à tipicidade ou de rota batida para o escapismo. O regionalismo desenvolveu-se tardiamente, após a fase inicial de europeização da nossa cultura, por força da ocupação dos espaços interiores, mas levou para os temas nativos o mesmo figurino expressional. Em conseqüência, o nativismo no romance brasileiro vicejou à sombra do idealismo: os retratos das personagens pareciam incompletos ou exagerados, faltando-lhes verossimilhança psicológica, e as paisagens, descritas com apuro lingüístico e timbre retórico, assemelhavam-se a quadros de naturezas mortas. Se o romancista tentava captar a expressão oral, transpondo falas e costumes, incidia no caipirismo - que é uma forma de ficção artificial e artificiosa. O localismo na ficção é a primeira instância da regionalidade e deriva algumas vezes para o provincianismo, da mesma maneira que o ficcionismo ecumênico, ou cosmopolita, deforma o romance de pendor ou de teor universalizante. Talvez por isso um romance bem arquitetado, como A Quadragésima Porta, do paulista José Geraldo Vieira, esteja hoje esquecido. Regionalismo ou sertanismo
surgiram por necessidade de metodologia didática e em razão
da expansão da temática, quando o país, auscultando-se,
quis investigar os seus limites e conteúdos, medir a sua densidade.
Com efeito, região
geográfica é uma coisa, região cultural é algo
distinto. Nem sempre a região geográfica adquire foros de
região cultural. E quando obtém voz própria, típica,
impregnada de cor local, será com base num ficcionismo que faça
do homem sujeito e predicado, ao mesmo tempo, do meio e das condições
de vida. A região literária do Nordeste viria a impor-se
pela pena de José do Patrocínio (um dos pioneiros do romance
da seca, com Os Retirantes, 1879), Franklin Távora, José
Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, Amando Fontes, José
Lins do Rego, Jorge Amado, José Vieira (o paraibano), Osman Lins
(o de O Fiel e a Pedra), Ariano Suassuna - seus epígonos
Houve uma quase coincidência de datas editoriais significativas - todas a partir de 1930 - com o surgimento de uma plêiade de ficcionistas de cepa nordestina que trabalhavam num projeto estético assemelhado: fazer o homem contracenar com a paisagem, primeiro em inferioridade, depois em igualdade de condições ou sobrepujando-a como expressão maior da realidade, na medida em que os autores dominavam recursos narrativos avançados. No romance nordestino de José Américo de Almeida (A Bagaceira, 1928: O Boqueirão e Coiteiros, 1935), a descrição de exterioridades, marcadamente literária, se impõe ao intimismo, por isso o relato resultará menos espontâneo, e conseqüentemente menos “verdadeiro”, do que Menino de Engenho (1932) e Bangüê (1934). Como romancista, Lins do Rego será mais criador, porque, na sua escrita, aplica mais o ouvido que a inteligência intelectualizada. Ele será, mais que qualquer outro do grupo nordestino, o escritor-que-se-lembra, aquele que transforma a matéria bruta do memorialismo em narrativas recriadas. Em sua pena, o tema transfigura-se e incorpora alta emotividade. Advém, então, uma espantosa naturalidade do dizer e do fazer literário, como se o ficcionista fosse uma caixa de ressonância, um tambor, um sismógrafo do meio social. Tem-se a impressão de que as personagens, recortadas de conhecidas figuras do dia-a-dia, adquirem, banhadas pela emotividade do relato, uma presença portentosa. Da sua infância e adolescência, das histórias que ouviu e dos resíduos de patriarcalismo açucareiro que ainda pôde testemunhar, Lins do Rego tem os alforges repletos de lembranças. Quando decide escrever, basta-lhe o esforço de recriação e associação, que não será assim tão grande, de juntar figuras, cenas, imagens, a elas agregando o seu testemunho de pessoa sensível. Diferente de José Américo, porque não quer conceituar nem concluir, quer apenas rememorar para atestar, José Lins do Rego será também diferente de Graciliano Ramos. Este, a partir do segundo romance, São Bernardo (1934), e recorrendo também aos brasileirismos como reação à cartilha estética portuguesa, chega com seu estilo concentrado, sucinto e reticente, em que as palavras, como escopos, desbastam o acessório em busca do essencial. Seu companheiro Lins do Rego, por temperamento um arrebatado, um emotivo, atém-se ao fio da novelística de remota fonte peninsular que pesponta a literatura popular no Nordeste. Será certamente menos escritor, quanto ao fazer, do que Graciliano, mas tem o destino dos que se fazem porta-vozes do povo, já que é um emérito contador de histórias. E vai esta expressão, aqui, no seu sentido puro. Robert Louis Stevenson, que viveu entre indígenas de uma ilha do Pacífico, foi por estes chamado, ao morrer, de “contador de histórias”. Outra homenagem não lhe cai melhor, nem mais alta. Há nos selvagens uma sabedoria instintiva. O romance nordestino, e com ele a obra de Lins do Rego, espelhou, mais que o chamado romance da terra, a busca de uma expressão nova casada a temas localistas ou regionais que se encaminhariam, com maior ou menor rapidez, para o estuário largo do universo ficcional. A região é o mundo, disse Eduardo Portella. Seu alcance dependerá, digo eu, de quem a povoa. A região pode chegar, via William Faulkner ou Graciliano Ramos, a um estágio psicossocial somente obtido por mestres universais do gênero. Também poderá, por força da emotividade desatada, tocar a consciência e pôr a sensibilidade em estado de brasa. Na busca de um romance brasileiro - brasileiro pelo tema, pelo tom, pelo tônus e por aspectos peculiares da nossa gramática portuguesa - o romance do Nordeste, praticado em todo o país, fortaleceu o ideário de Alencar. E ao desdobrar-se e marchetar-se, saindo do classicismo do paraibano José Vieira, o mestre de Vida e Aventuras de Pedro Malazarte, para as fantasmagorias de Hermilo Borba Filho e os enredos armoriais de Ariano Suassuna, deixou marcos imperecíveis da arte de narrar com emoção de José Lins do Rego - Menino de Engenho, Bangüê, Fogo Morto (1943), sobretudo este, com a sua galeria de personagens notáveis. Até hoje eu tenho na lembrança José Amaro, seleiro de beira de estrada, no seu desespero, na sua atormentada sede de justiça. Não esqueço a doença de Lula, a decadência do seu engenho, guardo na memória as facécias tragicômicas, chaplinianas, de Vitorino Carneiro da Cunha, pequeno Don Quixote de uma legião de nordestinos oprimidos. Ando com o cego Torquato e a sua dignidade ferida, o feroz chefe da tropa volante, o cangaceiro Antônio Silvino, a fanada Nenén, o assovio alegre do negro Passarinho nos canaviais. Fogo Morto tem lugar entre os dez maiores romances brasileiros de todos os tempos, Menino de Engenho é romance de formação, nos estertores do patriarcalismo, à altura de clássicos franceses e alemães, Bangüê, outra obra-prima que sobre a personalidade do homem fraco diante da economia estagnada atesta pelo ficcionismo o que Gilberto Freyre tanto escreveu do caráter do brasileiro forjado nas senzalas. O romancista José Lins é um filme vivo, que roda e perpassa na nossa memória. As cenas de Carlos de Melo e Maria Alice na rede são das melhores páginas amorosas que já escrevemos. Criador de personagens, o romancista tem na sua galeria os José Paulino, patriarca do sertão, o cantador Deoclécio em Pedra Bonita, os romeiros e retirantes, os cangaceiros ora sentimentais ora cruéis, os místicos, o menino que em O Moleque Ricardo abre os braços, patético, e geme: Cardo, Cardo, ao pressentir que o irmão vai embora de casa. Há o sentimentalismo comedido de Pureza, as paisagens de sol e sal de Água-Mãe, a sexualidade amordaçada que explode no canto solitário dos vaqueiros. O sertão nordestino, um vasto mundo, o mundo - e um mundo vivo, povoado por gente de carne e osso, não o frio mundo dos criadores de torres-de-marfim. Nesse mundo que é a região fala-se língua brasileira, estropia-se muitas vezes o cânone lingüístico para dar-lhe mais sabor e lógica. Como, por exemplo, na cena em que um velho defende o bode que comia milho na sua mão: “E o velho se fez na faca”. Ou construções admiráveis, do tipo “nunca que se esquecesse”, por “jamais esqueceria”. A abertura de frases e parágrafos por pronomes oblíquos legitima a nossa gramática, é uma ousadia que vem dos modernistas de 22. José Lins estava entregue a este mundo, em escavações na memória pessoal e coletiva, quando mudou de temática para escrever Água-Mãe e Eurídice, este um perfil psicológico de mulher, com recurso a mitos gregos e intenção de perfilhar Freud. Diriam os doutos: ele tentou, mas não conseguiu, por não ser um romancista erudito, escapar ao seu regionalismo. Engano: o ciclo de cana-de-açúcar esgotara-se na sua memória e no seu imaginário, apenas isso. E note-se que, mesmo mudando de geografia e de temática, mesmo tentando os temas psicanalíticos, José Lins mantém-se, praza aos céus, fiel à linguagem que trazia da sua infância de moleque branco da bagaceira dos engenhos do Nordeste. Não sei se
esta obra será grande, na acepção dos
Hélio Pólvora é ficcionista e crítico literário, autor dos recentes livros O Rei dos Surubins (contos) e Crônicas da Capitania. Pertence à Academia de Letras da Bahia. powder@e-net.com.br in A Tarde,
Salvador, 30.06.01 |
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