João Nepomuceno Kubitschek


Eurico

Hermengarda! ousei amá-la De Favila a nobre filha, Das Espanhas maravilha, Mimoso esmero dos céus! Ousei construir-lhe um templo De adoração na minha alma, Sonhei a vida tão calma, Vendo o céu nos olhos seus! Que era eu pra tão alto Erguer meu amor ardente? Era um tiufado valente, Um gardingo, nada mais! Na raça dos meus não tinha Priscos brasões de nobreza, Não tinha tanta riqueza Como os cofres de seus pais. O orgulho e a ambição se ergueram Entre nós — muro gigante! Quem pode transpô-lo ovante? O leão rugiu de dor. Entre nós abriu-se a fauce De imenso abismo sem fundo: De um lado, os homens, o mundo; De outro lado, o nosso amor! Era impossível! Que importa Tivesse os afetos santos, Como o diziam meus prantos, Minhas lágrimas de fel? Das esferas diamantinas, Do céu azul da ventura, Despenhei-me à noite escura, Como o arcanjo revel. Nunca da virgem o amículo Beijará meu lábio ardente; Sua alma pura, inocente, Não me dará um sorrir; Nunca a bênção do presbítero Ligará nossos destinos; Do noivado os santos hinos No templo não hei de ouvir! Nunca! Flama dos infernos Que a flor da esperança abrasa; Estilete agudo em brasa Nas fibras do coração; Nuvem prenhe de tormentas Que no céu rugindo passa; Hiena que despedaça Minha mais bela ilusão! Fugi dos homens! No claustro Fui chorar minha desdita; À santa virgem bendita Fui pedir consolações; Quis de mim próprio exilar-me, Exilando-me do mundo, Do olvido arrojar ao fundo Do passado as aflições. E o céu na profunda chaga Doce bálsamo vertia; Serena melancolia Pairou no servo da cruz; E dos meus lábios brotaram Cânticos pios, suaves, Que reboaram nas naves, Das catedrais de Jesus. Depois... travou-se o conflito Entre Deus e a imagem linda, Porque no meu peito ainda Não se extinguira a paixão: Ora a razão imperando Na consciência — Deus — bradava Ora em delírios clamava — Hermengarda — o coração. Em vão entre mim e o mundo Ergui a imensa barreira, E do templo na soleira Lhe disse um eterno adeus; Toda vestida de encantos, Vinha a imagem da donzela Sorrir-me na erma cela, Qual mensageiro dos céus. Ei-la — do cair das tardes Nos coloridos vapores, Da aurora nos resplendores, Na branca luz do luar, Na hóstia do sacrifício, Nas flores ao pé das cruzes, Dos bentos círios nas luzes, Nos ornamentos do altar. Dizei, virações noturnas, Esta história de agonias, Do Calpe nas penedias, Na mais funda solidão! Que não chegue ao mundo um eco Deste amor que me acompanha, Que como brônzea montanha, Me pesa no coração. Cala estas dores, minha alma... A serpente do deserto Já dispara o bote certo E ensangüenta o chão natal; Sobre um montão de ruínas Campeia altivo o Crescente, Por onde avança a torrente Surgem os gênios do mal. E tu, bela Espanha! o louro, Colhido ao sol das vitórias, Emblema das tuas glórias, Te vai da fronte cair? Na espúria raça de hoje Não tens mais valentes filhos, Que acendam de novo os brilhos Da estrela do teu porvir? Como tigres da vingança, Teus soldados não mais rugem? Embotou a vil ferrugem Os gládios da nobre grei? Não é mais fouce de morte O franskisk do visigodo? Não provaram-lhe o denodo As águias do povo — rei? Silêncio! O vento do norte Lá passa em busca dos mares! Silêncio! Ecoou nos ares Um grito de maldição! É o César das montanhas, É o Pelaio, aceso em fúrias, Na caverna das Astúrias Bramindo como um leão. Também no horror dos combates, Eu fui um soldado forte, Semeei o estrago, a morte, Como um raio vingador; Pela armadura de ferro Troquei a estringe sagrada, Pela borda ensangüentada Meu cajado de pastor. E as hostes fugiam lívidas Diante do meu aspeito... Nem uma flecha meu peito Não veio rasgar sequer! E ainda no caos revolto Dessas guerreiras falanges, No afuzilar dos alfanjes Tu me sorrias, mulher! Disseste-me um dia a história De teus infantis amores... Por que orvalhaste flores Que não podiam viçar? Fundir minha alma na tua Em cadeia indestrutível... Oh! nunca! nunca! impossível Entre nós está o altar! Ó Deus! do abismo do nada Por que meu ser arrancaste? Por que no mundo o atiraste, Como em funesta prisão? Que uma alma cristã não possa Apagar da vida o lume, Enterrar de um ferro o gume Bem fundo no coração!...


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