1º
Edição de
Três
Ponteados e uma Sabença.
ã Copyright 2002, João Filho.
Direitos
cedidos pelas Edições Falência do Indigente Ltda.
Revisão
Jaqueline
Martins Fernandes.
Digitalização
JL
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Capa
Balaio –
Fotografia – Edmundo Brandão.
FILHO, João Batista Fernandes. Três
Ponteados e uma Sabença. Bom Jesus da Lapa: 2002. Todos os direitos
reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio,
seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei nº 5.988.
Num falando cum pouco
ensino....................................22
Oswaldinho
Paulo Gabiru
Roberto Góes
Ronaldo Maciel
Zeca Bahia,
Poetas e Trobadores
do Sertão Perdido.
João
Guimarães Rosa – No Urubuquaquá no Pinhém – “Corpo de Baile”.
1
farinhando
seu sustento
na
curva da duna
alinhavando
lamento
na
lombada da ponte
todo
esforço é nulo
bovinamente
bolando
a
touceira e o pulo.
É
fundura de cova
que
tatu não se arrisca
e todo
o seu incêndio
no meu
capim é faísca
escancarada
feito retina
em
noite defunta
chumbo
espalhado no ar
quenãoseajunta.
É
Ojasso Margoso
farinhando
proveito
pois a
desavença o empurra
prum
buraco estreito
a
míngua é muita
a
cama-de-quiabento
na
estirância seca
desse
campo restinguento.
na
desausência do farto
feiúra
pra mais de metro
abarrotando
seu quarto
É
Ojasso Margoso
garantindo
guarnição
raspando
até escama
de
traíra, lambú e azulão.
É nêgo
Bizuíto bizorando
no
borralho da quebrada
gamela
d’astúcia cheia
por
todos ignorada
mas não
se fie fidalgo
em luz
de ponta-de-faca
da
treita sua folia
das
tripas sua capa.
O tempo
nos assalta
com
bala, ruga, confissão
carpindo,
curvo, coxo
agregado
no gibão
agentingole
sapo
sapo,
já engoliu brasa
e vai
anjo gago, demente
depenar
sua própriasa
vencendo
lajedo
na
embolada ladeira
malocando
seu medo
avesso
a ferro e lonjura
enfurecido
engodo
comido
pela metade
mas já
morrido de todo.
Tá no
eito largado
sem
riso cuia ou lenha
larga
logo um gemido
feito
cadela prenha
mas é
liso gongazeiro
evita
beco, barulho
sabe
que meganha é guariba
e
pocomã engolintulho.
Nos
vasos magros do mês
lambança
deu embolia
sobrou
as estacas do cercado
cruezas
de casa vazia
desusos
dum déu de desejo
de
velhas usanças
despejo
de verbos alheios
no meio
da contradança.
Pipocam
clarões
no lado
esquerdo das esquinas
Tõin
gongá releva
mas já
não tarantina
o que
vai dentro da treva
côa sua
resina
é
zabelê ciscando rumo
no
descompasso da chacina.
2
São
casebres de seca
morada
de ferrugem acesa
de
encardida pilastra.
aflora
medo e nervura
feito
incansável madrasta.
Avança
vereda adentro
tocada
por sanha e fogo
em
azougue desenfreado:
- urubu, caroá, desmazelo
arrasando
dente e cabelo
em
convulsões de drogado.
Cão
farejando moita
flecha
procurando escuro
bicho
procurando escora.
Carrega
sujo e estopa
da sola
a barriga oca
carrega
o que o devora.
Carrega
fábula e fadiga
carrega
manhãs aflitas
no bojo
da boca magra.
Na
gaiola das costelas
ponta
de pele amarela
que
esfola feito praga.
no fojo
que o sol atiça
sabe na
brenha a fonte.
Lá fora
esperneia à tarde
sem
seiva, acama e arde
nos
baixios depois do monte.
Mas
mantrichã amou curiango
numa
peleja sem valia
e
despencou na incerteza.
Lá onde
o vento encurva
pra
vista ficar mais turva
e o
corpo ser fera presa.
É
porele que a noite vaza
melando
tudo de preto
furando
osso em algia.
Noite
que trabalha sua bala
bruto
buraco que cala –
feira,
viatura e pedraria.
Perceba
quando a poeira sobe
ressecando
o já ressecado,
é a
invalidez que soluça.
Porta
gemedeira que emperra
prole
perdida que berra
santo
que na beira do caos, debruça.
depois
que a poeira assenta
e o
tinhoso de capa passeia
em tudo
deixa sua resina
mistura
de enxofre e benzina
atrofia,
assombra e tapeia.
Aqui o
castigo fez abrigo
o que
temos cabe num prego
e
desvelo chamamos gastura.
Aqui
gavião se despedaça
o que
vive, vive por pirraça
lanha
lagarto e anum se anula.
3
GRACILIANA
O Princípio
Amargo do Seco
Meio-dia.
O verbo seca na sombra,
o sol
salga com lapadas lentas
o solo
gretado que sangra a sola;
hora
que a soalheira é tão cruenta
que a
própria vertigem arrebenta
e o
tempo vem à porta pedir esmola.
Seco
instala no poro um pó preto,
treiteia
e na tripa arma sua rede;
seco
que suga sabugo e degenera,
e não é
retórica vazia, venha e vede:
apesar
da amplidão da luz, uma parede,
emparedando
seiva & zerando fera.
Seco é
quipá grimpando a sotavento,
crespo
é sina armando seu boiz,
cardo é
ritmo de ruptura e rezinga,
seco
aqui é idéia que se maldiz
vai
escancelando caduca cicatriz,
o
porvir, presente e pretérito, xinga.
Porisso
a palavra seco não foi ainda
devidamente
desfatada, seu uso repele;
se
tocada, a superfície é lenhosa,
farpa
sucede no olho que impele,
(aqui,
talvez, um luciferino se revele)
seco
engancha na goela e a goela grosa.
Porisso
no tabuleiro o caniço físsil,
agulhando.
Nas beiras o tato é cortante;
seco,
apesar de parado, procura rixa:
no
plástico, no flandres, no instante
em que areia é moída por sede errante,
deixando
sedenta até lagartixa.
Seco
grimpa na grés, o quê? só Deus sabe,
seco
negreja na nascença, desampara;
reduz o
fóssil a ferrugem, desnorteia;
(veja a
linguagem – ao poeta é cara)
seco é
áspero, a própria planície vara,
antes
que vingue, ele disseca a veia.
Salitre
de seco petrifica as vísceras,
confere
ao colérico certa paralisia;
tenha
uma idéia de como peçonha:
em
borda calcária traça assimetria,
é no
esgar que goza câimbra e fia
sua
urdidura de madrasta medonha.
Mas
seco não gasta – reentranha casca,
se no
desuso arquiteta seu provento
é
áspero e aparenta sempre fratura,
vagaroso,
parado, quase sem valimento,
esgalha
dores grampeadas no vento,
e do rasgo na retina, nega a sutura.
Seco
não é estio, é estado. Fornalha
inalterável.
Seco – matéria incendida.
seco-sibila
entre o garrancho do umbu,
afia sua
fome na folhagem fendida,
com
vento delgado fatiando a ferida,
dissecando
no ar carcará & urubu.
Meia-noite.
Seco sacramenta sua sanha,
porém
sua sanha é sonsa, mas sustenta
um cabedal rigoroso de vida, virente;
exato:
ali nada sobrevive, se agüenta,
porém é
tudo enterrado até a venta
e tudo
tenta traduzir sua semente.
Esses
são tempos de carcomença
de dar
dor na goela até o talo
de
fazer latir mula e cavalo
tempo
que espanca o espinhaço
de tudo
quanto é catrumano
da
espiga só deixa o bagaço
e pela
culatra faz sair o cano.
Esses
são tempos de catrevage
onde a
quizila é um refrigério
dicumezim
um grande mistério
faz
livusia se amoitar num canto
secura
tanta que racha o pote
carcará
se converte em santo
e rasga navalhas pra mais um mote.
Esses
são tempos de caminhadeira
onde
beata desacredita da crença
espia
só que até calango pensa
num
jeito de vesperar miorança
pois é
tempo de fadiga e trapaça
besta-ferando,
este tempo avança
espalhando
tudo quanto é desgraça.
Macambira
anda pedindo arrego
unha-de-gato
arranhando brisa
só
cobra tá com a barriga lisa
na
rodia pra melhor lançar seu bote
nessa
feitura é que o cancro come
gavião
não aventura caçote
em espiral desfartura e some.
Não
falando cum pouco ensino
aos
senhores da valia e da prensa
onde
dona-do-corpo é uma doença
que faz
estancar a flor da jitirana
é
menino de perna fina e cabeçudo
é casa,
cama, canteiro, membrana
quando
menos espera, suja tudo.
Repare
que nem reza funciona
pra
estancar todo esse enxurrio
vai a
penúria desfiando seu fio
e
costurando agonia na bruaca
azedume
é o que tem pra agrado
tempo onde até o tempo empaca
nem
anum pra canja é dispensado.
Desce
lasca de sol do céu pra baixo
ferrando
lombo de vivo e morto
pode
ser espírito bom ou torto
qu’ele
não perdoa e desfere seu tapa
faz
desvaler inda mais o lostiba
palmo
de sola esquece o mapa
na boca-da-noite onde a lua briga.
Aroeira
não agüenta e enverga
no
terreiro em trevas, cão se dana
angústia
retorcendo, se auto-esgana
no
alpendre da carcomida casa.
numa
gamela transtorno se lava
duma
janela a paisagem vaza:
onde a
lua sua própria cova cava.
Esses
são tempos de osso e pelanca
bicho-fome
já carcomeu o tutano
de
rebarba inda planta desengano
na
terra podre debaixo do jirau
imbuzeiro
não diz nada, nem nega
ingazeira
racha, faz truvejar pau
carrapato
do lombo se desapega.
Nascido
em cama-de-cobra, calejado
sabedor
que a morte é entrevada
que só
anda nas matinas especada
não
d’assunto pro triste que deixa
só
penúria e avareza na capanga
boca
suja que só babuja queixa
de bofe
azedo e azuretada zanga.
Nascido
desacismado e virulento
pois é
sabedor da perfídia e da usura:
que a
virtude e o desapego tritura
cresce
tanto que mastiga o dono
e
começa roendo a beira da calça
tirana,
ainda deixa como abono
descobrir
que é tudo idéia falsa.
Pois
valsa usura muita poresses sítios
usurentos
andam de venta fechada
pra não
gastar a vida malajambrada.
são
esses que fazem chiar a ratazia:
pelada,
de rabo cumprido e andaço
espalha
seu fudum pela cercania
roendo as dobras do mês de março.
Alento
– é pai ingrato e judiador
dentro
do açude põe cumprida jibóia
na
dispensa prepara sua tramóia
carunchando a braúna da viga
de
esterco seco faz o chão do curral
ruindade
tanta que até Deus castiga
e põe
na ferida dois dedos de sal.
Pois
que é sabedor, mas não pode a cura
na unha
desbrava carrasco e enfeza
até
corisco e suçuarana lhe preza.
pois de
presença e sugesta tá farto
pois
que costura de pedra, desprega
mergulhando
em becos e quartos
e só em
diabólicos mares navega.
É
daqueles poucos na lisura desses tempos
não refuga o que monstro renega
pois da
secura transborda uma adega
já
cancelou tudo quanto é malogro
já fez
ressumbrar desastre e desdita,
e
apesar das zagaias de cada jogo
na garganta pára, e não precipita.
e dos
restos fará uma ceia solene?
(isto
apenas para que se pene
um minuto
de vagarosa sevícia)
quem
lavrará seu testamento?
(dissimulando
delicada carícia)
assinando
sina em folha de vento.
Os
aflitos caninos que degustarão
seus
farrapos, fala, farpas, frieiras
sua
cabeça debaixo duma goteira
gotejando
o momento do berro
que não
sairá, pois de bruto implode
e
entorta e revira o que era ferro,
quer
retalhar a alma, mas não pode.
Miasma
que se alastra e fede tudo
pedaço
por pedaço até a cambraia
surra
seu rebento, te aplaude com vaia,
porém
antes da queda tem uma tarifa:
nunca
terá o que desejou ter possuído
na soma da memória vai tudo à rifa,
virá uma vontade de nunca ter nascido.
Ainda
não se narrou em que calabouço
ficarão os trapos de sua carniça
não foi
falta de modos, nem preguiça
da pena
que relata esse tempo corrosivo
que
tora as tiras da lira de Orfeu
é que
dentro do motivo está o motivo:
o
paquete não virou, mas lucro não deu.
Por
isso esses são tempos de catrevage
é o
sobejo depois do longo descarrego
onde
voz nenhuma teve ou terá sossego
pois
nunca haverá brecha, nem parede
no
vazio em que continuarás caindo
e caindo vai dando esmero a sua sede
na
sabença do seu pouco ensino.
NOTAS
1º Ponteado: Privintina é a corruptela de prevenir,
prevenção. Nos tempos d’antanho no médio São Francisco era aquele mourão que
demarcava as terras. Assim diz a irônica prosódia popular dos beleguins da
época: “Segues pelo beiral do são Francisco, rumos adentro, até onde direito
tiveres”. Ojasso Margoso é uma já falecida figura da família Araújo de Bom
Jesus da Lapa. O mote do morão di privintina foi dado ao autor pelo
músico/compositor Paulo Araújo. Nêgo Bizuíto e Tõin Gongá são figuras reais.
Gongazeiro aqui designa o típico malandro barranqueiro. Tarantina é palavra
emprestada do poeta Haroldo de Campos. Todas as imagens absurdas, assim como a
grafia das palavras e suas várias conotações, não só desse como dos demais
poemas, vão por conta e risco do autor.
2º
Ponteado: Curiango é pássaro. Preferi esta grafia para mantrichã.
Algia aqui é dor aguda nos ossos.
3º Ponteado: A composição desse poema é uma
tentativa de captar a difícil paisagem caatingueira. Graciliana é minha paga
sincera ao romancista Graciliano Ramos. Princípio amargo está aqui como glosa
científica. A feitura deste poema deve muito à “Os Sertões” de Euclides da
Cunha. Adianto: Meio dia é o ápice do nosso sol causticante. Soalheira é
reiteração. Quipá é vegetação rasteira. Sotavento aqui é ir à direção contrária
do vento. Boiz é armadilha para passarinho, e é uma palavra oxítona. Desfatado
é tirar o fato, as vísceras. Plástico e flandres não estão aqui como mera
figuração plástica, é na verdade, o que vem acontecendo com o sertão, cada dia
mais entulhado de lixo. “Grimpa a grés”: Grés é o mineral que forma boa parte
do sertão: arenito. Grimpa aqui significa procurar minuciosamente. Está
conotação, creio, não está dicionarizada.
Sabença: Vários
vocábulos deste poema foram desentranhados de mestre Edilberto Trigueiros no
seu “A Língua e o Folclore da Bacia do São Francisco”. A edição utilizada foi
da Funarte/1963. Carcomença aqui designa o destrutivo. Catrumano é homem
rústico. Catrevage aqui é o inutilizável. Dicumezim é o mínimo de comida. Rasga
navalhas é palavra dúbia: designa tanto a ave, como pode significar a imagem em
si. Caminhadeira é a designação barranqueira para diarréia. Rodia (pronuncia-se
“rudia”) é a posição que a cobra fica quando ameaçada. Lostiba é indivíduo
imprestável. Cova cava é também encontrável em Glauco Mattoso, só que no plural
“covas cava” (www.uol.com.br/glaucomattoso),
mas a feitura do poema se deu antes da leitura de Glauco. Ratazia é neologismo.
Neste poema há duas vozes: uma é neutra, a outra que surge inesperadamente é o
eu lírico se retratando. Fudum aqui é mau cheiro. Creio que não está
dicionarizado com esta conotação.