Jonilton Andrade
Diário do Nordeste,
Fortaleza, Ceará - Domingo
21 de fevereiro de 1999
Da beleza e do texto
literário
Falar de beleza é assustador. A opinião, generalizada, de
que
se trata de questão
puramente subjetiva desencorajaria qualquer
pretensão de
investigar objetivamente a natureza do texto literário
à luz de um
critério de beleza.
Prioritariamente, convém que diga da minha preferência pela
utilização
do termo pessoal, em vez de subjetivo, para falar da
experiência
estética, isto é, da vivência com o belo artístico.
Explico. Subjetivo
é termo latino: subjectu (posto em baixo). No
ser ”bombardeado”
pelos condicionamentos históricos, é o que
se mantém sub.
Quem sabe, o Dr. Freud diria tratar-se do
compulsivo. Assim,
permito-me dizer que o subjetivo nivela
todos os racionais,
pondo o homem próximo do animal. Em
princípio,
a reação ante uma queda d'água, quer se ache bela,
aterradora ou misteriosa,
é subjetiva. Já o pessoal (do latim
persona) remete à
máscara. O indivíduo mais os valores
socioculturais “produz”
a pessoa. As convenções são máscaras.
O pessoal, por conseguinte,
ao contrário do subjetivo diferencia.
A pessoa é
o indivíduo mascarado, isto é, condicionado
socioculturalmente.
No pessoal, obviamente, - está o subjetivo.
O contrário
não é verdade. Uma sociedade é um grupo de
pessoas “mascaradas”
pelas convenções que as identificam (as
pessoas) como pertencentes
àquela comunidade. Cada
sociedade, tem suas
“máscaras” próprias.
Um parêntese, para registrar uma coisa medonha: regendo-se
pelo mecanismo da
reação controlada, a cultura de massa pugna
pelo domínio
do subjetivo; os humanos passam a agir
conpulsivamente. Anula-se,
portanto, a pessoa. O que parece
cultura outra coisa
não é senão uma parafernália de desvalores
culturais, uma vez
que aniquila a base da realização humana, que
é o livre arbítrio.
O sujeito é levado a reagir ao menor apelo da
esquizofrenia capitalista,
cujos esteios, aliás, se sustentam na
resposta compulsiva
dos consumidores. Na reação subjetiva, não
pessoal.
Com relação ao belo na literatura, direi, necessariamente,
que
a experiência
é pessoal ( o que não implica negar o subjetivo).
Dissesse, por conseguinte,
apenas, que é subjetiva, estaria no
meio do caminho. A
obra de arte é alguma coisa material
animada por uma imagem
emocionalmente carregada. O primeiro
contato que se tem
com o objeto artístico é sensorial, o que
implica dizer subjetivo.
Todavia, quanto mais “rico” o mundo
pessoal, mais intensa
a vivência estética na apreensão da beleza
poética. Isto
porque um conhecimento pertinente, no mundo da
literatura, levará
o observador (leitor) a apreender a adequação
do sensível
com o sentido e em termos de realização artística,
o
objeto belo é
aquele que realiza a adequação total do sensível e
do sentido, suscitando
o livre acordo da sensibilidade e do
intelecto (Mikel Dufrenne,
em Estética e Filosofia). Dizer, então,
que é inteiramente
descabido discutir a beleza (poética), sob a
alegação
de que o belo é desprovido de toda objetividade, não
me parece atitude
consistente.
Se a beleza é dádiva de deuses, se é criação
espontânea da
natureza etc, isso
não me interessa, uma vez que, falando sobre o
texto literário,
convém evitar a prática filosófica da discussão
da
beleza em termos idealistas.
A arte realiza-se em objetos
concretos. A Literatura
realiza-se na literatura. A obra literária é,
por conseguinte, antes
de mais nada, um objeto concreto. Que
princípios
fundamentariam um método de estudo do texto,
partindo-se de critérios
de beleza? Seria possível tal método?
Para começo
de conversa, a leitura teria que romper os limites da
subjetividade. Somente
dispondo de informações culturais
pertinentes, seria
possível, por exemplo, associar a beleza (e a
excelência do
poético) ao princípio da coerência interna da obra,
ou seja, da verosssimilhança.
Tal leitura teria que ser
essencialmente pessoal,
para “flagrar” no objeto a beleza que se
dá, objetivamente.
Uma das leituras do princípio aristotélico da
verossimilhança
coincide precisamente com a concepção de que
quanto mais perfeita
for a adequação do sensível com o sentido
tanto maior será
a perfeição do objeto estético. Em termos de
obra literária,
dizer perfeita significa dizer bela. E devassar esse
mundo apenas subjetivamente
é, parece-me, inteiramente
impossível.
Será necessária uma leitura pessoal, o que não se
viabiliza sem um conhecimento
específico. É a inserção do sujeito
no universo da cultura
que lhe dará a medida da vivência da
beleza artística
nos meandros do texto literário. Se não, vejamos.
Seja o seguinte texto:
“Eu sei de tua foice,
tua enxada, de tuas
mãos cavando
a terra alheia
de teu suor, da lágrima
deixada
em cada pedra e em
cada grão de areia”.
Faço a marcação rítmico-melódica do
primeiro decassílabo.
As vogais sublinhadas
indicam as sílabas tônicas; as outras são
átonas:
eu sei de tua foice, tua enxada.
O que se tem? Uma alternância uniforme átona-tônica
(ritmo
binário, para
tomar emprestada terminologia da música). É
significativo notar
que todo o soneto de José Chagas (que poeta
maranhense...!) tem
esse mesmo esquema rítmico-melódico.
Monótono? É
exatamente dessa aparente monotonia rítmica que
nasce o sentido (e
a poeticidade e a beleza) do texto. É ai que se
inscreve a perfeita
adequação sensível-sentido. Observe-se um
camponês trabalhando
com a foice (ou com a enxada). O que se
tem? Foice e enxada
sobem-vão “fracas”, “leves”, mas
descem-vêm “fortes”,
“pesadas”. Fraca-forte-leve-pesada... O
ritmo do poema presentifica
a imagem do próprio ritmo de
trabalho e de vida
(monótonos) do camponês. Quem é apenas
alfabetizado pode
até emocionar-se com a leitura do poema de
José Chagas
(vivenciar apenas subjetivamente a experiência). A
emoção
intensifica-se, porém, com a leitura pessoal, ou seja,
com a compreensão
da arquitetura do texto. E o curioso é que
posso, até,
pleitear uma universidade para essa emoção, agora
pessoal (estético),
o que não teria cabimento para uma vivência
apenas subjetiva.
A beleza da escritura poética deverá ser “apanhada” (vivida)
no jogo de causalidade
interna dos elementos da escritura. Como
diria Umberto Eco,
a beleza da obra de arte é marcada pela
sugestão de
um significado a mais, que eu sinto existir para além
dos seus elementos
materiais e que uma leitura apenas subjetiva
não aprenderia.
Em Vidas Secas, Glaciliano Ramos deu a um
capítulo o
título O mundo coberto de penas. A explosão de
poesia que rebenta
da palavra penas, se relacionada com os
demais componentes
da obra, é estonteante. Penas (de urubus
ou de arribações)
fazem sombras. É à sombra dos juazeiros, no
início da obra,
que os infelizes cominhantes descansam. Mas é
num mundo de sombras
que mergulham, no climax da obra,
quando, temerosos,
indagam: “que iriam fazer (numa) terra
desconhecida e civilizada”?
Mas penas remete para as duras
penas em que vivem
os sertanejos nordestinos, quando a planície
se avermelha de sol.
E pena é castigo; daí por que Fabiano
querer “responsabilizar
alguém pela sua desgraça”. Mas viver
“inutilizando-se por
causa de fraquezas fardadas que insultavam
os pobres” causa dó,
pena, piedade. Etc. Toda a novela do
alagoano é
uma arquitetura-modelo de coerência interna de texto
poético, onde
explode a beleza, cuja intensidade requer leitura
definitivamente pessoal
para apreendê-la.
É bom concluir essas observações com um pensamento
do
esteta Mikel Dufrenne:
“... talvez seja necessário estar de má-fé
ou ser ingênuo
para sustentar que todo juízo estético é
irredutívelmente
subjetivo...”
Página inicial do Jornal de Poesia
|