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			Joyce Cavalccante 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
			
			Fantasia assinada 
			 
  
			
			Tínhamos, não sei por que nem quando, 
			combinado que ele ia fazer meu retrato, mas nunca dava tempo e 
			nenhum dos dois se organizava pra conseguir uma brecha na agenda. Um 
			dia era ele que esperava a visita de um galerista importante, outro 
			era eu que não acreditava em duendes e tinha que trabalhar. Enquanto 
			isso, rodando como um fundo musical, uma euforia que ainda não era 
			concretamente um tesão; mais parecida era com a excitação pela idéia 
			de fazer o que jamais havia feito: posar para um pintor. 
			
			Nada que justificasse tanto alvoroço. Ninguém tinha combinado que eu 
			deveria me despir para posar. Mas, lá no íntimo, já eu partia desse 
			pressuposto. Querendo. Imaginando muito mais. Temendo. 
			
			Até quando nos encontramos numa festa. Ele veio conversar e 
			baixinho, rouco, como se conspirando, perguntou quando eu poderia ir 
			vê-lo em seu atelier. Olhei para os lados pra me certificar se meu 
			namorado não estava nas proximidades e marquei dia e hora. Selamos o 
			acordo. 
			
			Sem nada assumir, escolhi calcinhas de cetim verde escuro quase 
			preto, combinando com um sutiã rendado. Meias novas e um figurino 
			irretocável, sugerindo pecado. Banho, ao começar a me aprontar, 
			perfume gostoso espalhado pelo corpo inteiro, inclusive entre os 
			dedos dos pés. Surpresa me critiquei: Ainda não conseguiram pintar a 
			imagem dos cheiros. 
			
			Consumindo-me em fantasias, depois de tanta preparação, ali 
			estávamos um em frente ao outro. Ele, de macacão salpicado de tinta 
			de todas as cores e ocasiões, mas o rosto barbeado e, se não me 
			engano, exalava um leve cheiro de madeira perfumada como os 
			perfumes da moda. 
			Foi me explicando como fazia suas próprias tintas, como com elas 
			invadia as telas. Segurou-me com carinho pelo queixo, a luz do sol 
			examinou meu rosto e minha mão, para decidir qual matiz seria o mais 
			apropriado. Pôs-se a trabalhar, enquanto eu, caladinha, sentada no 
			único divã de veludo cor de maravilha, alisava o tecido, 
			observando. Mais tarde veio conferir a tonalidade que encontrara 
			para minha cor: entre cambraia e pêssego, comentou, quase 
			inaudível. Em seguida, parecia que eu já não estava mais ali. 
			Concentrava-se para esboçar-me. 
			
			Pincelava na tela meu rosto que não se parecia comigo de início para 
			depois começar a parecer-se. Vinha e apalpava meus olhos com os 
			polegares. Voltava ao cavalete. Olhava-me. Olhava a tela à 
			distância. Examinava-me longa e lentamente; gesto sempre 
			despudorado. Aproximava-se e me acariciava o nariz, medindo-o. 
			Voltava a seu posto. Trocou de pincel, pegando agora um bem mais 
			delicado. Desceu aos lábios de forma aplicada. Voltou a manipular 
			as tintas numa paleta que trouxe para perto, e me explicou que 
			estava inventando uma cor para meus lábios, descrevendo-os com 
			gulosa luxúria. Experimentando a cor, passou o tímido pincel pelos 
			contornos de minha boca, ato demorado, cuidadoso, ilícito; me 
			deixando arrepiada, me obrigando a suspirar alto, quase me traindo. 
			E para que ele não adivinhasse o estado de mi¬nhas calcinhas, fechei 
			os olhos e o deixei servir-se, modular-me. Voltou à tela e depois de 
			me pincelar à vontade, foi até a janela e decidiu que o sol já não 
			mais o satisfazia. Continuaríamos no dia seguinte. Eu estava tonta. 
			Rubra. Afogueada. Ele notou e indagou com cinismo se no dia 
			seguinte eu conseguiria ficar como agora. Ria pelo cantinho da boca 
			quando o deixei, respondendo: talvez. 
			
			Ao chegar o tal dia seguinte, ele tinha se adiantado e já desenhado 
			meu pescoço. Contou-me que passou a noite inteira a fazer isso, me 
			imaginando. Dizendo assim passava os dedos pelas minhas linhas, na 
			tela, mais uma vez me arrepiando cá, me umedecendo lá. 
			
			Chegando perto ainda mais ousado, deslizou o olhar por mim inteira, 
			descendo pela curva dos seios por entre o decote, adivinhando-os em 
			tamanho e formato, desenhando-os demoradamente. Acariciava um depois 
			o outro com o pincel. A partir daí me olhava com o rabo de um só 
			olho, enquanto com a cabeça do polegar esfumava sombras em meus 
			mamilos, que em mim se iam encolhendo, ficando durinhos. E ele a me 
			fitar como se estivesse percebendo o arco-íris por baixo de minha 
			blusa. 
			
			Acho que está ficando seca. Vou molhá-la mais. Estava se referindo à 
			tinta. Deu lambidinhas nas linhas do pescoço, descendo até um dos 
			meus peitos em figura, enquanto passava os dedos pelo outro, com 
			ternura. 
			
			O corpo dele se avolumava também me querendo, fazendo de seu macacão 
			uma tenda armada, assim como o meu o queria, regando-se. Mas graças 
			à diferença eu estava absolutamente confiante que ele não sabia do 
			que acontecia em mim, pois meu corpo não se denunciava como o dele, 
			assim. Maliciosa, ria do que nele se passava, e ele não podia se rir 
			igualmente de mim por ser masculino, expressionista. 
			
			Foram muitas essas sessões entre tardes ensolaradas ou escuras. De 
			todas elas eu saía excitada, sentindo um não sei o quê, que vinha 
			não sei de onde, e doía não sei por quê. Era tudo feito muito 
			vagarosamente, prolongando os momentos. Fatalmente chegou o dia em 
			que ele, já depois de ter me definido o umbigo e me acariciado o 
			ventre com seus instrumentos, revelou minhas coxas e o que está 
			entre elas, meu sexo, feixe das emoções mais fortes dessa vida. Me 
			fez de pêlos louros e ralos, como sou. Me fez de pernas largas e 
			abertas esperando sua visita, como estava. E para se certificar de 
			que seria bem-vindo, acrescentou ao quadro duas gotinhas soltas 
			descendo pela minha virilha esquerda, sugerindo já saber dos 
			líquidos que de mim se geravam, mistérios da alma indiscreta que 
			denuncia o querer feminino, cheio de ambivalências impressionistas. 
			
			Querendo comparar criação e criatura, quando o retrato ficou pronto, 
			me pediu agora, finalmente, para tirar a roupa toda. Precisava 
			ver-me. Eu precisava dele. 
			
			Nua, me conduziu pelos ombros, colocando-me ao lado da obra, na 
			mesma posição da imagem. Como outras vezes já tinha feito, tomou 
			distância para avaliar o resultado. Enquanto olhava para nós também 
			se desnudava. Seu pincel, seu sexo já se preparavam para o ato 
			final. Foi só quando veio a completar esse seu trabalho, 
			satisfazendo-lhe o último detalhe, imprimindo em meu dentro sua 
			assinatura e no canto inferior direito do quadro, seu orgasmo. 
			  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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