José Sarney


Carta do Anti-Santo José
aos seus tristes

EU, de nome José, rasguei os olhos da vida em cinza manhã de abril. Chorei e o campo chovia onde a cidade pedia tempos, clemência e amor. BENDITO sejais chão Pinheiro com o canto dos bois e os patos selvagens que deixam as nuvens e os ventos gigantes que lhe guiaram as asas cruzando oceanos e pousaram à beira dos Defuntos onde sacodem a viagem e fazem ninhos na folha das plantas aquáticas que flutuam como anjos deitados na mansidão dos lagos. IRMÃOS: NÃO me julgueis pelo abandono dessa sombra que prometeu entregar-me o corpo de pelúcias de carne para que eu o amasse com a força de todas as tempestades e eu nunca o amei. NÃO me julgueis por haver começado o meu caminho naquela canoa de toldos e ramos que cantavam, "bendito é o santo nome". EU fui ferido pelos vampiros gigantes que esmagaram a sunga de chita colegial feita de flores pequenas e alças de rendas onde ficou sepultado para sempre o seu sexo pequenino e o meu primeiro olhar que eu carregava nas mãos como o cálice daquele vinho do corpo de Deus que eu não bebi para embriagar-me na fome de amar a pronta carne, o pão, o fruto, a vida e os peixes que habitavam os lagos desse campo que me abriu os olhos numa manhã de abril. IRMÃOS: NÃO me julgueis pelo que fui e jamais fui e sempre serei, pois de não ser vou sendo esta noite que não teve pôr de sol. EU juro que a cadela que latia junto de tuas mãos e eu dizia que era raiva devia ter morrido para que hoje eu não a lembrasse para matar o meu ódio e ressuscitar o meu nojo de pensar que eu fui capaz de amar e os ventos da minha vida não têm mais velas a empurrar nem barcos para sair do Rio Pericumã e chegar ao mar alto da Ponta de Itacolomi e ali afundar como afundaram nas pedras eternas de moluscos tantas navegações e tantos monstros. IRMÃOS: Eu habitei a Rua da Madre de Deus onde os teares funcionavam dia e noite, no número 127. Dona Sérgia! eu te beijo cerzideira que me carregou de amor quando os outros me cuspiam e as estátuas de porcelana branca que vieram de Portugal guardavam vigilantes as cumeeiras largas do casario da Fábrica onde batiam algodão branco e doce da velha indústria Santa Amélia e as operárias furtavam os casulos para higiene do ciclo menstrual naquele mundo de louças fusos, caldeiras e fardos. A Fonte das Pedras que de pedras tinha a água que escorria como sangue das carrancas que jamais aceitaram o suor dos escravos que Dona Ana Jansen fazia atirar nos poços de lanças para serem espetados e se transformarem em fantasmas que enchiam de gemidos todos os becos desta cidade que nasceu para ser possuída em coitos de agonia e pecado e em virgindades com cheiro de alfazema entre o amor e as picadas de arraia. IRMÃOS: NÃO me julgueis pelo bonde de minha infância que matei porque eu o amava e o matei, como se não mata o amor, mas pelo indesejo da morte. ELE não corre e foram minhas mãos que o trucidaram e trucidaram com ele as moças todas que estavam na janela e eu desejava casar para fazer filhos que de novo pegassem o bonde e fossem até o fim dos caminhos e de novo fizessem outros filhos e outros mais para que o bonde fosse o trilho eterno e não o fim do filho. .............................................. IRMÃOS: NÃO me julguei por não haver fugido com a trapezista do circo mambembe, com que todos os meninos das cidades de cavalos e cabeças-de-cuia pensam fugir para viver em acrobacias e picadeiros. Eu a reencontrei em Brooklin, num janeiro de neve nessa cidade de Nova Iorque que eu também amei como se ama a prostituta pintada que nos acena com uma noite de orgia. O táxi amarelo parou. De repente ao meu lado a trapezista que eu tinha amado e ali repousava de sandálias e tranças. Ao meu espanto apenas disse: José! De repente o mundo voltou ao princípio e eu senti que os passarinhos podem cantar em Manhatan como na mangueira velha do quintal da casa do velho José Costa, meu avô, que me disse um dia: Guarda a tua alma e o teu corpo em vinha-d'alho, porque a vida é feita de postas azedas em que os figos e as melancias não têm nem gosto nem cor. IRMÃOS: EU, José, vos digo que a vida é um bando de itãs que gritam histéricas na beira do lago de Viana à espera da terra parar de repente e de repente a canarana ter flores eternas as mangueiras terem galhos de meia légua e debaixo de sua sombra os índios pedirem amor com os anjos, plantando rosas de capim de marreca e o homem Senhor do destino possa descansar os seus lábios vermelhos nos seios das deusas jovens, adormecidas nas aguadas de ventos, novilhas de todos os mundos. IRMÃOS: PERDOAI-ME de dizer a Deus que ele não pode pisar meus caminhos com os pés de cardos que romperam de sangue a coroa fria e sem glória desses dias que ele me deu e eu esmaguei. IRMÃOS: perdoai-me. o sonho da morte é uma nuvem que não cobre as eternas noites da vida.

(Os Maribondos de Fogo / 1978)

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