Jorge de Souza Araújo
Galanteria com aura
de martírio
in A Tarde
05/06/99
As liras gonzaguianas da
Parte II do poema consagrado a Marília são baladas do infausto
amor. Mantêm as características mais gerais da poética
arcádica/neo-clássica, como a estrutura dialógica,
a sensação de fugacidade do tempo, da vida efêmera,
o tônus anacreôntico, o arcabouço mitológico,
o carpe diem horaciano, acrescidos de um elemento novo, notoriamente pré-romântico:
a mimese passional, cuja inspiração parece intuir o destino
adverso do poeta, aureolado pelo sentimento arrebatado de distância
e saudade e uma paixão tão absoluta que ultrapassa fronteiras
físicas, acrescenta-lhes a melancolia do martírio.
O sentido básico dessa
segunda parte indica um claro rigor de tom amargurado e queixoso. Perdido
o homem na melancolia de seu destino, resta ao poeta ganhar as graças
do tempo, as temperanças do poder que o encarcera, mediante o amor
da pastora distante. Daí o recurso ao carpe diem: "Ah enquanto os
Destinos impiedosos / Não voltam contra nós a face irada",
enunciado ainda na P. I, quando então o amador Dirceu convoca Marília
à intensidade afetiva. Parece também que o imperativo desse
carpe não se dá apenas estilisticamente. Num caso raro de
felicidade no tratamento histórico-social mais poesis, Gonzaga alia
à necessidade de assegurar pelo casamento sua base social, a Sorte,
ou Fortuna, de burguês assentamento, inclusive com projeções
até à velhice: "Que o ímpio tempo para todos corre./
Os dentes cairão, e os meus cabelos,/ Ah! sentirei os danos, que
evita só quem morre".
A Lira XXII (P. I) lembra
a Marília, por exemplo, que o sumo bem da existência é
ser lembrada pelos séculos (via poesia) e não pelos tesouros
da riqueza espúria. Apelando à sabedoria mitológica
(Lira XXIV), Dirceu convoca Marília a árbitra da terra: "Tu
podes dar, Marília, a todo o mundo / A paz, e a dura guerra".
O conjunto do poema dá
voz única ao pastor Dirceu, que eventualmente convoca Alceu (Alvarenga
Peixoto) e Alceste (Cláudio Manoel da Costa) na consagração
do canto à primeira pastora, amada única e muda receptora
de tão intensos cantares. A personalidade dissolvente desse amador
é tanta que alguns intérpretes modernos do poema já
o chamaram de Dirceu de Marília, Dirceu evidenciando-se como o Outro,
o Presente na perspectiva ausente de uma esquiva Marília. As liras
tendem a racionalizar a perenidade do sentimento, algumas vezes, traídas
pela fobia do inverossímil ou pela contensão do arrebatamento
passional. Na perquirição do Belo, Gonzaga não se
deixa enganar e, velho(!), persegue a juventude de Marília, como
Fausto a de Margarida, numa lenta vampirização do amor que
se acrescenta a cada esquivança. Nesse sentido é Gonzaga
todo árcade, naquilo que a natureza arcádica busca em bem
perene, tendo a Grécia como pátria comum na manifestação
desse desiderato.
A parte segunda das Liras
de Gonzaga muda o discurso primaveril da notação inicial
(a da aparente aceitação de Marília à corte
e ao casório), mas nem de longe irá assumir um movimento
de expiação e jaculatória. Preso na ilha das Cobras
(RJ) por sua participação na Inconfidência Mineira,
Gonzaga/Dirceu persiste na crença do refrigério amoroso e
nos ideais da liberdade. Seu canto à amada se compraz na glosa de
sua sorte com uma automortificação diluída em suave
ironia. Nessas adversidades, Gonzaga produz o que de mais belo há
na literatura brasileira do Setecentos: "Eu tenho um coração
maior que o mundo, / tu, formosa Marília, bem o sabes. / Um coração
e basta, / onde tu mesma cabes".
Na Lira III, a felicidade
de uma composição integradora do estilo e menção
histórica ao poeta condenado. Na IV, um quase autoflagelo de emissão
apelativa de seus passos infelizes com o fim de despertar o coração
da amada e/ou a piedade de seus carrascos para o difícil transe.
"As faces vão perdendo as vivas cores / e vão-se sobre os
ossos enrugando,/ Vai fugindo a viveza dos meus olhos;/ tudo se vai mudando".
No interior dessas amarguras, o poeta deseja sensibilizar a amada para
a sua dor, ao tempo em que desloca o pensamento obsedante da desgraça.
As liras vão se sucedendo em outros tantos lances da desventura.
A dramaticidade da V confere o estatuto de verdadeiro pedido de socorro.
As imagens são de procela em alto mar e de nau desgovernada. Foge
o equilíbrio clássico em proveito do lancinante sentimento
de mundo ruindo ao redor do cantor.
"Deixa que viva a pérfida
calúnia / e forje o meu tormento" – Gonzaga dirige – se a Cláudio/Glauceste,
sem saber que o amigo naquela hora mesma o estava incriminando. Convocando-o
ao canto da amada, imaginando conceder-lhe o lenitivo da fraternidade,
diz Dirceu: "Que enquanto a bela vive,/ também, Glauceste, vivo".
A Lira IX denuncia um poeta quase desistente. "O amador padece as dúvidas
impressentidas e debaixo / do açoite da Fortuna aflito geme".
Na dor aguda, Gonzaga/Dirceu
recorre aos mitos de Sísifo e Prometeu para caracterizar seu sofrimento
similar ao dos ícones: "Mas sinto de outro monstro a crueldade:/devora
ao coração, que mal palpita,/ o abutre da saudade" (Lira
XI). O poeta, porém, nunca abastarda a sua lira, ainda que um ou
outro verso empalideça o conjunto com alguma imagem de aflição.
O caráter refrão "Mandarás aos surdos deuses/ novos
suspiros em vão" é claro indício de que o amador mandava
mensagem de clemência aos seus algozes, indiretamente, dirigindo-se
a Marília. Com a agravante súplica nos versos finais da Lira
XIII: "Também mando aos surdos deuses /tristes suspiros em vão".
Da impaciência agônica
em que vive metido em si e consigo, Gonzaga/Dirceu apela também
ao invocativo cristão, mencionando José, vendido como escravo
no Egito (Lira XIII). A Lira XIV é dirigida a Barbacena, amigo de
outrora, convocando-o a chorar com Marília a sorte ingrata do ex-ouvidor.
A Lira XVII antecipa o julgamento a que se verá submetido o poeta,
dilatando as bênçãos da absolvição. O
que anima o poeta Dirceu é cantar em liras ardentes a dor da separação.
Não se libertando do jugo, libera, entretanto, o instante óbvio
do Desejo de absolvição e retorno à sua Beatriz, exilado
do Inferno em que carpe a pena.
As liras gonzaguianas, com
referencial surpreendente da publicação em vida do poeta,
remetem a uma intertextualidade que ultrapassa os misteres neo-clássicos
e árcades. A Lira XXV traz um sensualismo mitigado, à sombra
dos cantares salomônicos. Dela se extrai um inspirado corpus de enaltecimento
da Beleza, oriundo de um posto de observação carregado do
trevoso do cárcere. Mar salgado, truísmo usado por Gonzaga
na Lira XXVII, antecipa o gozoso Fernando Pessoa de Mensagem. Hábil
praticante das sextilhas, dos hexassílabos e redondilhas, Gonzaga
exulta, em brinco medieval, com carta de Marília, numa ilustração
a la Abelardo e Heloísa.
De dramático arrebatamento,
a Lira XXXII rascunha vaticínios do poeta pós-julgamento
dos inconfidentes, com sacrifício e pena de morte e, no mínimo,
prenúncios sombrios para os envolvidos. Os protestos sucessivos
de inocência atenuam-se na bordação imaginária
do vestido de Marília, correspondente à bordação
dos versos. A ânsia de sono da Lira XXXIV é recesso psicanalítico
impetrado pelo inconsciente textual do Desejo de morrer para evitar o sofrimento,
assim como, antes, o casamento seria passaporte da liberação
e autonomia de um Gonzaga empobrecido financeiramente.
A Lira XXXIV ainda descreve
a visão das cidades Alta e Baixa de Salvador da Bahia, tudo mantendo
a projeção de um desejo do vate, sonho de que acorda com
os gritos dos soldados no pátio da prisão. A Lira XXXV, amargurada,
ressentida da ausência de fervor da Amada, apenas envaidece-a do
nome que lhe cose a pena do poeta. Transparece nesse ponto o Ovídio
das Metamorfoses e da Arte de amar. Na Lira XXXVIII, considerações
sobre processo e motivos da Inconfidência, assacando Tiradentes de
pobre, sem respeito e louco.
Marília de Dirceu
teve sua composição aí por volta dos anos 1783-1793.
Gonzaga tem um perfil bastante acidentado de vida. Fez circular as Cartas
chilenas em 1787. Preso em 21 de maio de 1789, foi condenado ao degredo
para Moçambique em 1792, ano em que sai a P. I das Liras (Lisboa,
Typographia Nunesiana). Em 1793, ei-lo casado com Juliana Mascarenhas,
sua enfermeira e herdeira de rico traficante de escravos. Perfeitamente
integrado à vida em Moçambique, lá chegou a Juiz da
Alfândega e lá também morreu certamente rico e prestigiado,
antecipando em anos o percurso de um Rimbaud, com passagem pelos trópicos.
Tomás Antonio Gonzaga,
magistrado e professor, com tese em Coimbra sobre Direito Natural, teve
vivência brasileira e militância num século de oposições
dolorosas entre o indivíduo e o Estado, com Ilustração
e Revolução Francesas, Igualitarismo, Revolução
Industrial na Inglaterra, crise do Absolutismo monárquico, contestações
ao direito divino, Independência Americana e outras mumunhas do tempo.
Suas liras do cárcere, vamos dizer, representam o melhor elenco
do Marília de Dirceu, sem o namoreio pastoralista ou complicadas
remissões filosóficas de alguns contemporâneos. Os
tropos da prisão alevantam a suma gonzaguiana ao exercício
feliz de dualidade na expressão neo-clássica, importando
destacar a experiência (menos concreta, por insuficiência documental
e porque tal investigação corresponde a esclarecer-se o enigma
de Capitu) virtualizada pela poesia, traduzida no imago do fingimento.
A prova de vitalidade do
poema, independentemente da historicidade que o permeia, é a persistência
analógica de sua atuação, no campo diacrônico
e de validação estética. As Liras de Dirceu/Gonzaga
sobrevivem até hoje por conta de sua atemporalidade e seu realismo
interno. Valem como documento emocional e afetivo para além das
situações e personagens que as inspiraram. Basta lembrar
Orfeu/Eurídice, Petrarca/Laura, Dante/Beatriz, Tristão/Isolda,
Romeu/Julieta, Otelo/Desdêmona, galeria imensa de ícones do
amor insuperado ou incorrespondível. Boa parte dessas Liras de Dirceu
não se escreve a Marília e, sim, através de Marília,
para a comoção do nobre de alma.
Para sua sobrevivência,
Gonzaga dirigiu-se ao Visconde de Barbacena e outras superiores autoridades.
Dirceu, não. Dirceu será emocionalíssimo assoberbado
pela expressão de tersol moral em que vivia, mas contido num espectro
de racionalismo estóico, perseguindo vieses da temperança,
animado por uma deusa cega (a Justiça mitológica) que deveria
existir. Assim se fantasiará do fugere urbem e buscará o
locus amoenis, a aurea mediocritas, fundindo procedimentos neo-clássicos,
arcádicos, mesmo os rococós e até os proto-românticos.
Harmonia e equilíbrio, clareza e naturalidade, nem tanto ao rigor
racionalista da natureza árcade, nem à ambição
absoluta do Classicismo, claudicante entre a amenidade de superfície
e o primor descritivista do arabesco, o que determina o teor da lira gonzaguiana
é a interpretação alegórica da vida rústica
como um bem simulado mote arcádico. Ao contrário do que pensamos
geralmente, a singeleza é aristocrática.
O prosaísmo da vida
real (TAG morreu abastado de corpo e finanças; Dorotéia,
solteira, aos 80 anos, um tanto sem honra para os maliciosos, matrona mãe
de bastardos) empobrece os frontispícios do imaginário. O
pretendido processo de descolorimento Marília/Dirceu, em face à
ordenação cronológica de fatos históricos,
banaliza a realização estética. Se o mesmo se fizesse
aos fenômenos em outras literaturas o efeito arrasador seria conhecido:
Dante/Beatriz, Petrarca/Laura, Romeu/Julieta e outros pares arruinariam
a disciplina estética que confere aos casos um horizonte personalíssimo,
um epos próprio numa liricidade especial.
Jorge de Souza Araújo
é doutor em Literatura, autor do recém-lançado Perfil
do Leitor Colonial (edição da Uesc) e Auto do Descobrimento,
entre outros, de ensaio e poesia.
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