Luiz Costa Lima
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Um poeta inexistente:
Sousândrade (1)
in Idéias, JB,
17.07.1999
14.08.1999
Em junho do corrente ano tive a surpresa de receber o convite para,
em um curso sobre malditos importantes, fazer uma palestra sobre o poeta:
Joaquim de Sousa Andrade (1832/1902). A surpresa é facilmente explicável:
embora tenha sido ele o primeiro poeta que estudei e de quem tive a oportunidade
ocasional de descobrir - ou reencontrar - um inédito, o Harpas de
ouro, jamais tive a possibilidade de sua abordagem em algum curso. É
por uma espécie de vingança, se bem que irrelevante ou sequer
notada, que resolvo dedicar esta e a próxima coluna ao poeta.
Embora sua redescoberta muito deva a um crítico como Fausto
Cunha, em artigo pioneiro de 1954, e ao então jornalista Oswaldino
Marques que falava aos amigos da fama oral que, em Belém, se guardava
do poeta, ela é, de fato, um feito de Augusto e Haroldo de Campos,
a partir do ensaio Montagem : Sousândrade, originalmente publicado
no Correio Paulistano (18 de dezembro, 1960, 1, 15 e 29 de janeiro e 26
de fevereiro, 1961), base do posterior Re/visão de Sousândrade
(1964, revista e aumentada em 1982). Minha participação foi
marginal e independente. Na verdade, devo indiretamente a Sousândrade
a amizade que mantenho com Augusto e Haroldo.
Por volta de 1958, como minha família materna era de São
Luís e eu lá costumava passar as férias de fim de
ano, vim a freqüentar a Biblioteca do Estado. Foi aí que, entre
os poetas românticos, encontrei o seu livro, O Novo Éden (1893).
Acostumado à toada dos contemporâneos, não entendi
o livrinho. Mas o achei muito estranho. Por isso, ao voltar ao Recife,
onde então morava, procurei o que houvesse do poeta. Foi uma amiga,
estudante de filologia, que me alertou para o fato de que, em certa biblioteca,
havia um exemplar de seu livro mais famoso, O Guesa, tão desconhecido
da bibliotecário que fora arrolado entre as obras de literatura
portuguesa. Li-o e o entendi menos ainda que o anterior. Mas a estranheza
sentida era tamanha que, seguindo no fim de 1959 para Madri, o levei comigo.
Sucederam aí dois acontecimentos decisivos. Ambos se ligam ao poeta
João Cabral de Mello Neto. Como pouco depois de chegar a Madri me
tornei amigo de João, falei-lhe de minha "descoberta" e lhe passei
um exemplar de O Guesa. Como tampouco ele sabia de quem se tratava, se
deu ao trabalho de consultar Romero e Veríssimo. Ao nos encontrarmos,
observou João que era corriqueiro entre os historiadores da literatura
considerá-lo confuso e menor.
Deparou-se contudo com os episódios mais singulares de sua
obra, contidos nos Cantos II e X. Dizia-me João Cabral: se eles
forem a prova de que Sousândrade era louco - fato que me repetiam
os senhores de São Luís, que dele se recordavam - como se
explicaria que as passagens seguintes a estes episódios voltassem
à estruturação métrica normal? Logo depois
desta conversa, João ainda me informaria que uns jovens amigos seus
haviam publicado um longo ensaio a respeito. Explique-se a coincidência!
Creio entretanto que só ao voltar ao Brasil, em 1961, passei a manter
contato com Augusto e Haroldo e tive acesso a seu trabalho. Como logo fui
secretário da revista da Universidade Federal de Pernambuco, publiquei
um resumo do Montagem : Sousândrade, em numero de out/dez. de 1962,
junto com artigo meu, que aqueles amigos republicariam como apêndice,
no Re/visão. Passemos ao que importa: a apresentação
do poeta.
Havendo nascido na fazenda paterna, situada no município de
Alcântara, em 1832 - até havia poucos anos os restos do casarão
da família podiam ser vistos - e morrendo em 1902, em São
Luís, a vida madura do poeta se desenrolou na segunda metade do
século 19. Beneficiário da riqueza rural paterna, Sousândrade
percorreu, entre 1853-56, vários países europeus. Acredita-se
que tenha se diplomado em letras pela Sorbonne e, depois, ainda feito o
curso de engenharia de minas. Tampouco sabe-se ao certo se teria conhecido
as Fleurs du mal ou a poesia coloquial-irônica de Laforgue e Corbière,
muito embora seu poema "Mademoiselle" (em Eólias, 1874) aproxime-se
da dicção destes, em claro afastamento do legado romântico
nacional.
Uma das poucas coisas certas que dele sabemos se refere a seu conhecimento
do grego - de que o governo do Maranhão o fez, no fim da vida, professor
no Liceu Maranhense, como maneira de lhe assegurar um ganha-pão.
A partir daí pode-se crer que sua diferença poemática
estivesse relacionada a leituras em uma tradição que, com
exceção de Odorico Mendes, era desconhecida de seus pares.
No ano seguinte a seu retorno (1857), seu primeiro livro, Harpas
selvagens, é publicado no Rio. Treze anos depois, em 1870, viaja
pela América do Sul e, no ano seguinte, acompanha sua filha, que
ele, republicano convicto, decidira que estudasse nos Estados Unidos. Fixa
residência em New York, onde permanece entre 1871 e 1885. Como sua
única fonte provável de renda eram as colaborações
para O Novo Mundo, jornal editado em New York por José Carlos Rodrigues,
é viável que houvesse aí dilapidado sua herança.
É então testemunha das mudanças que se operam
após a Guerra da Secessão, sendo contemporâneo da expansão
industrial norte-americana e dos escândalos que marcaram a presidência
do general Grant. Sua presença in loco foi fundamental para a matéria
prima que recolherá no chamado Inferno em Wall Street (Canto X,
escrito entre 1873 e a década seguinte). Seu retorno ao Brasil deve
haver coincidido com sua ruína financeira. Republicano de primeira
hora, mas sem acesso ao "patrimônio" da primeira república,
Sousândrade não partilhou da distribuição de
cargos pelo novo regime. Sabe-se que já apenas possuía a
quinta da Vitória, cujos escombros cheguei a fotografar. Anos depois,
soube que fora destruída. Segundo o testemunho que me transmitia
o prof. Jerônimo Viveiros, que o conhecera como menino, os alunos
mais velhos do Liceu Maranhense se sorteavam entre si para ver quem se
matricularia na cadeira de grego, condição para que o poeta
recebesse seus proventos- Nos seus últimos dias, era não
só um poeta desconhecido, mas considerado um excêntrico, que
andava pelas ruas de São Luís de fraque e cartola e, como
se fosse um personagem de Machado, perseguido pela assuada dos moleques.
A propósito de Sousândrade, lembremos duas observações
de Haroldo de Campos. Diz a primeira: "Sismo de vibração
acima da curva acústica da época, sua obra ficou à
margem" (Sousândrade, col. Nossos clássicos, 3ª
ed. rev., 1995). E a segunda, do mesmo ensaio: "Numa perspectiva internacional,
é preciso que se diga, a obra sousandradina recua bruscamente o
marco da independência da literatura brasileira para a nossa segunda
geração romântica, marco este que estaria nominalmente
com os modernistas de 22 (...)". E o que se diria hoje da figura? A pergunta
é embaraçosa: o impacto da Re/visão foi bloqueado
pela rivalidade que continuou a separar os poetas concretos da maioria
letrada do país. Ao passo que, durante os anos de 1970, sob o patrocínio
do governo do Estado do Maranhão, seus Inéditos foram
divulgados, reeditado O Guesa, bem como uma biografia do pesquisador
norte-americano Frederick Williams, hoje, além da tese publicada
em 1986 por Luíza Lobo, pouco resta da redescoberta. Sousândrade
voltou à inexistência. Ser marginal da periferia não
é o mesmo que ser clochard em Paris.
Como não haveria espaço para analisar sua linguagem
- nos bons momentos: seu extremo sintetismo, suas deformações
expressivas, sua tremenda agressividade formal-conteudística, suas
aglutinações com línguas estrangeiras - contentemo-nos
com traços bem gerais.
Destaquem-se os dois episódios mencionados de O Guesa.
Para melhor entendê-los, antes façamos uma anotação
geral sobre o caráter do poema. O título se refere a uma
lenda dos índios muíscas, da Colômbia, que Sousândrade
encontrara em suas leituras de Alexander von Humboldt. O guesa era personagem
de um culto sacrificial: um menino apanhado aos dez anos, que deveria repetir
o caminho de Suna, i.e., o caminho de Deus, até chegar aos quinze
anos, quando era sacrificado pelos xeques, os sacerdotes. No poema, o guesa
qualifica tanto o poeta como os índios americanos. Dotado dessa
dupla inscrição, o guesa realiza um périplo que compreende
a Amazônia, a travesia da América do Sul até chegar
à bolsa de Wall Street. Não se pense contudo em um relato
linear. Embora seja um poema narrativo, não possui a seqüência
aristotélica de uma ação encadeada. Por isso os episódios
referidos são destacáveis, sem que com isso se perca seu
fio.
O primeiro episódio, conhecido como o "Inferno do Tatuturema",
é uma missa negra, de que participam índios de diversas tribos,
regatões, padres, personagens históricos (por ex., o gal.
Abreu e Lima, Gonçalves Dias, o matemático Gomes de Sousa,
etc), em loucura, galhofa e pandemônio. Em vez de um episódio
que se desdobraria pela ação, seu sentido é dado e
reiterado por cada estrofe. Elas contam de um clima de dissolução,
roubo, fraude, orgia e embriaguez. Embriaguez mesmo das línguas,
em que o latim eclesiástico se deforma e se mistura às línguas
indígenas e ao próprio português, que, do ponto de
vista indígena, se combinam no processo que eufemisticamente chamamos
de aculturação. Veja-se apenas uma de suas estrofes:
A relação estabelecida pelo padre, sintomaticamente
chamado Excelsior, entre a liberdade dos índios com a fervura do
cauim, que cintila no prazer do festim, só poderá ser entendida
na ambiência de paródia, que comanda o episódio. Não
estranha que a referência a Gonçalves Dias implique a flagrante
ironização da idealização a que o indianista
submetera o indígena. Utilizando estudo bastante posterior de Haroldo
de Campos, em que ele trata da tentativa alencarina de criação
de uma linguagem brasileira como uma intuição da "linguagem
originária", depois formulada por Walter Benjamin, pareceria válido
opor o caminho alencarino (por extensão gonçalvino) ao de
Sousândrade: aqueles tratavam de uma situação mítico-primigênia,
a serviço de constituição de uma fantasista identidade
nacional, Sousândrade, do índio "embranquecido", dissolvido
e dissoluto. Na linguagem a este apropriada, domina, do ponto de vista
macroscópico, o fragmento, não mais a ação
seguida e unitária; do ponto de vista microscópico, a aglutinação
parodística, a babel cacofônica.
Venhamos a um flash ainda mais ligeiro do "Inferno em Wall
Street". Ao passo que a narrativa vinha em uma cadência normal, a
chegada ao "Inferno" se anuncia por estrofes como a seguinte:
(A voz mal ouvida dentre a trovoada)
"Fulton’s Folly, Codezo’s Forgery
Fraude é o clamor da nação!
Não entendem odes
Railroads
Paralela Wall-Street a Chattám"
Os dois primeiros versos são formados por frases comuns
na América daqueles anos: a loucura de um inventor se punha ao lado
da fraude de alguém que só os jornais americanos da época
esclareceriam. O segundo verso parece antecipar uma reflexão sobre
nossos espertos de hoje. Os versos três e quatro - cuja rima ou se
julga imperfeita pela abertura vocálica de ’odes’ ou, em solução
mais ousada, se ouve mesmo pela discrepância fonética entre
a palavra portuguesa ’odes’ e a inglesa ’railroads’ - reiteram em nível
material e concreto o que afirmava o verso dois. Tudo isso leva à
topografia do último verso. Sabe-se pelos mapas daquela New York
que Chattam era o nome de uma praça que havia próxima a Wall
Street. Mas a acentuação que lhe concede o poeta e a pronúncia
que o leitor do português lhe daria não a aproximava de Satã?
Quantos contemporâneos de Sousândrade terão
visto o que ele intuía? Os que o ignoram têm razão:
este bad guy não pode ter existido.
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