Leontino Filho
Casal
Ela (do mesmo lado)
E ela gemia,
enlaçada pela sua própria imagem escorrida na borda do espelho.
E ela chorava,
tragada pela sua própria flacidez desmanchada no tecido da noite.
E ela gritava,
contaminada pela sua própria deselegância esculpida no tempo.
E ela tremia,
descolorida pela sua própria apatia negligenciada no sexo.
Ela perseverava
o sorriso, orgulhoso sinal de que o tempo parou e a encontrou lado a
lado, pela primeira vez, na estampa rota de tudo que fora perdendo
ao longo dos dias, e os dias eram longos para ela, sem fim, como sem
fim era a agonia do vento a balançar cortinas, a ondular os lençóis,
a derrubar xícaras, a misturar garfos e facas, a sujar copos, a
espalhar cacos de louças no chão, a desarrumar os lugares, antes tão
compenetrados. Ela era a desajeitada de todas as horas, a que
permitia que as visitas chegassem a cada instante, mesmo sabendo que
jamais receberia alguém. Tudo deixava para depois, depois do banho,
depois do café, depois do almoço, depois do jantar; depois da
solidão tomaria um bom banho e almoçaria o banquete quimérico do
adeus. Sem razão, ela repousava suas compulsões no toque solitário
do corpo, às escondidas, sentia o desconforto dos dedos à procura
dos recantos mais prazerosos e instantâneos do gozo – que música
mais a estimularia? – a que penetrasse suas entranhas e desfibrasse
a potência adormecida da paixão. Ela mudava a posição das mãos e
alcançava o intruso passageiro e em suas infinitas delícias sentava
e, por demorados momentos, já não gemia, já não chorava, já não
gritava, já não tremia. A dor fora traduzida em ritmo reatualizante
do prazer. Se por um acaso do destino e por falta de razão, ela
gemesse, ela chorasse, ela gritasse e ela tremesse, diria para si,
em frente do espelho:
– fecho o meu
corpo ao silêncio barulhento da paixão, pois, perco-me,
irremediavelmente, na senda em que fui confinada: a solidão só vale
a dois, mesmo quando o par for um, eu sou a única guia das minhas
travessuras, das minhas impulsionantes transgressões.
E ela, outra
vez, mal apetecida pelo passado, esmorecia por entre os poucos
dentes que lhe restavam sobre a sua imagem flácida, deselegante e
apática a pernoitar no espelho do tempo, tecido que avança pelos
entremeios do sexo. Rumoreja, com manha, de novo:
– uma folia de mil mãos acariciava lentamente todo o meu corpo.
E ela, outra
vez, servia-se de si mesma. Mulher de gozo intermitente – açude
acostumado com as parcas visitas da chuva –, desamada pelos outros e
que quase sempre se recolhia à ação de conjurar as primeiras
antipatias angariadas durante toda vida: uma vida sem ninguém,
apenas dela mesma, que no ritmo rangido das velhas fechaduras
reforçadas por trancas de madeiras apodrecidas (ela era o retrato
acabado de uma madeira-sem-lei) e do chão empoeirado da casa,
conseguiu destravar seu ódio com um áspero toque de um fino dedinho
anular: ela adormeceu em êxtase. E sonhou, com displicente
inocência, com pântanos e mingaus opacos de cinzas e proteínas
perseguidoras da Eternidade.
Ele (a
contragosto, ainda assim)
E ele era mais
ele, o macho caçador, pronto para abater suas vítimas com a
virilidade animal.
E ele era mais
ele, o super-homem predador, pronto para deslumbrar suas conquistas
com a ferocidade descomunal.
E ele era mais
ele, o senhor do terreiro, pronto para cantar de galo suas
galinhazinhas com o som desafiante e desafinado das madrugadas.
E ele era mais
ele, o maioral do pedaço, pronto para descontrolar suas amantezinhas
com o ferrão de todas as lábias.
Não era por nada
não, mas ele sempre foi mais ele, ‘tava escrito, e no que ‘tá
escrito num se deve mexer, concorda? Se não, que que se pode fazer:
é a natureza e com a natureza não se deve ‘bulir’, bole pra ver no
que vai dar!’ ‘tou te dizendo e quem diz parece que amigo é, sei
lá.’ ‘depois que o bicho pega não tem mais jeito, certo?’
Assim, ele
mantinha sua pose e suas possessões, era um sujeito arrebitado, de
nariz empinado, de topete alinhado, de porte avantajado, um senhor
canastrão – novela mexicana associada a todos os horários: das
quatro, das seis, das sete, das oito, das nove, das dez, um
movimento global sem limites, a aventura da inércia na tela
inadimplente da vida – um baita de um marmanjão, arrotando poderes
da porta da cozinha à sala sem visitas, daí para a rua, a eternidade
sem fim do céu que não poderia jamais esperar.
Assim, ele
disputava seu espaço, escovando suas roupas, abrilhantando seus
sapatos, aromatizando seu hálito, ah, nada como o próximo beijo na
rapariguinha da esquina. Por isso, nunca descuidou da aparência, era
caprichoso, era não, é caprichoso, afinal de contas, o macho
caçador, o super-homem predador, o senhor do terreiro, o maioral do
pedaço tinha um nome a zelar, e um nome a zelar é coisa muito
grande, é tudo na vida de muitas pessoas, não importa que se jogue
um barril de lama no nome dos outros, o que não pode acontecer, em
hipótese alguma é descuidar de seu próprio nome. Onde já se viu
coisa semelhante: o laborioso galo com as suas galinhazinhas deixar
de ser um animal feroz, só por causa de algumas amantezinhas
tagarelas – no terreiro da esculhambação só não vale cantar árias,
admite-se qualquer música, de preferência a que diz tudo não dizendo
nada: – meu amor não me deixe só, você é a minha flor (flor de
araque, mas flor), não sei porque insisto, e como, tanto nesse amor
– ‘chega né’ (vem logo pra cá). ‘Meu arranque existencial e
transcendental’. O tema musical predileto dos amantes sempre mistura
um cotovelo de difícil localização a uma dor que dói onde ninguém
vê, vai parar aonde ninguém sabe e termina, para o bem da
humanidade, entre paredes, num total de quatro, posição e criatura
da dor que deveras não passa, haja bolerão apagodado, sons rachados
em primeira e segunda vozes, axés e souls chinfrins gorjeados ao pé
do ouvido para domesticar tamanha cornagem, vade retro. Tudo
isso faz parte do infalível e fálico receituário másculo do
derradeiro macho de plantão que, com tamanha macheza, é um finório
visitante dos espelhos, um em especial, aquele que se derrete para
ele:
– espelho,
espelho meu, sou ou não sou, quer dizer, há alguém mais bonito e
mais macho do que eu? (e o espelhinho na sua estranha covardia,
engolia: e eu é que sei?!...) pergunto por perguntar, mas sei que
não existe, sou único e exclusivo, por e para mim, todas se
derretem, é a vida e com a vida ninguém brinca. Eu não costumo
brincar com fogo, eu sou o próprio fogo. Ela que venha.
E ela a despeito
dele, sempre vinha. Para brincar, quem sabe. Muros derrubados,
brincadeiras com cócegas tesudas, excitantes, saborosas, debaixo das
‘nossas’ noturnas barraquinhas escancaradas de Ankara.
Ela & Ele (pois
não)
(De frente um
para o outro, eram só amor... pó que entope as narinas e desobstrui
a pele: e como mentem)
Araraquara, 18
de outubro de 2001
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