Luís Gama


Quem sou eu? (I)

Quem sou eu? que importa quem? Sou um trovador proscrito, Que trago na fronte escrito Esta palavra — Ninguém! — A. E. Zalvar — Dores e Flores.
Amo o pobre, deixo o rico, Vivo como o Tico-tico; Não me envolvo em torvelinho, Vivo só no meu cantinho: Da grandeza sempre longe, Como vive o pobre monge. Tenho mui poucos amigos, Porém bons, que são antigos, Fujo sempre à hipocrisia, À sandice, à fidalguia; Das manadas de Barões? Anjo Bento, antes trovões. Faço versos, não sou vate, Digo muito disparate, Mas só rendo obediência À virtude, à inteligência: Eis aqui o Getulino Que no pletro anda mofino. Sei que é louco e que é pateta Quem se mete a ser poeta; Que no século das luzes, Os birbantes mais lapuzes, Compram negros e comendas, Têm brasões, não — das Kalendas, E, com tretas e com furtos Vão subindo a passos curtos; Fazem grossa pepineira, Só pela arte do Vieira, E com jeito e proteções, Galgam altas posições! Mas eu sempre vigiando Nessa súcia vou malhando De tratantes, bem ou mal Com semblante festival. Dou de rijo no pedante De pílulas fabricante, Que blasona arte divina, Com sulfatos de quinina, Trabusanas, xaropadas, E mil outras patacoadas, Que, sem pinga de rubor, Diz a todos, que é DOUTOR! Não tolero o magistrado, Que do brio descuidado, Vende a lei, trai a justiça — Faz a todos injustiça — Com rigor deprime o pobre Presta abrigo ao rico, ao nobre, E só acha horrendo crime No mendigo, que deprime. - Neste dou com dupla força, Té que a manha perca ou torça. Fujo às léguas do lojista, Do beato e do sacrista Crocodilos disfarçados, Que se fazem muito honrados, Mas que, tendo ocasião, São mais feroz que o Leão. Fujo ao cego, lisonjeiro, Que, qual ramo de salgueiro, Maleável, sem firmeza, Vive à lei da natureza; Que, conforme sopra o vento, Dá mil voltas num momento. O que sou, e como penso, Aqui vai com todo o senso, Posto que já veja irados Muitos lorpas enfunados, Vomitando maldições, Contra as minhas reflexões. Eu bem sei que sou qual grilo De maçante e mau estilo; E que os homens poderosos Desta arenga receosos Hão de chamar-me — tarelo, Bode, negro, Mongibelo; Porém eu que não me abalo, Vou tangendo o meu badalo Com repique impertinente, Pondo a trote muita gente. Se negro sou, ou sou bode Pouco importa. O que isto pode? Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta. Há cinzentos, há rajados, Baios, pampas e malhados, Bodes negros, bodes brancos, E, sejamos todos francos, Uns plebeus, e outros nobres, Bodes ricos, bodes pobres, Bodes sábios, importantes, E também alguns tratantes Aqui, nesta boa terra Marram todos, tudo berra; Nobres Condes e Duquesas, Ricas Damas e Marquesas, Deputados, senadores, Gentis-homens, veadores; Belas Damas emproadas, De nobreza empatufadas; Repimpados principotes, Orgulhosos fidalgotes, Frades, Bispos, Cardeais, Fanfarrões imperiais, Gentes pobres, nobres gentes Em todos há meus parentes. Entre a brava militança Fulge e brilha alta bodança; Guardas, Cabos, Furriéis, Brigadeiros, Coronéis, Destemidos Marechais, Rutilantes Generais, Capitães-de-mar-e-guerra, — Tudo marra, tudo berra — Na suprema eternidade, Onde habita a Divindade, Bodes há santificados, Que por nós são adorados. Entre o coro dos Anjinhos Também há muitos bodinhos. O amante de Siringa Tinha pêlo e má catinga; O deus Midas, pelas contas, Na cabeça tinha pontas; Jove quando foi menino, Chupitou leite caprino; E, segundo o antigo mito, Também Fauno foi cabrito. Nos domínios de Plutão, Guarda um bode o Alcorão; Nos lundus e nas modinhas São cantadas as bodinhas: Pois se todos têm rabicho, Para que tanto capricho? Haja paz, haja alegria, Folgue e brinque a bodaria; Cesse pois a matinada, Porque tudo é bodarrada!

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