Linaldo Guedes
Intervalo lírico: Rememorações
sintético-cubistas
de uma vida passada à limpo
Por Delmo Montenegro
Se analisarmos o novo livro de Linaldo
Guedes, Intervalo Lírico (Forma Editorial, Paraíba, 2005) a partir
das configurações estilísticas do seu texto anterior, Os zumbis
também escutam blues e outros poemas (Editora Textoarte, Paraíba,
1998), poderíamos facilmente falar em termos de uma queda. Linaldo
Guedes, de cara, nos surpreende ao adotar uma espécie de retrocesso
no plano narrativo. Em Intervalo Lírico, opta por rememorar o seu
passado conjugal da forma mais linear possível, sem obstáculos, sem
desconstruções.
É óbvio que vindo de um autor com a
cepa inventiva de Linaldo, tal processo apenas se configura como um
outro nível de mascaramento. Linaldo Guedes quebra a nossa
expectativa para dizer afinal de que matéria é feita a sua poesia.
Linaldo quebra a expectativa literária sobre o texto (em termos de
uma alte literatur já pré-concebida), fratura o eixo de continuidade
de sua opus dando-nos um momento de respiro, de entr’acte, de quebra
da quarta parede cênica.
Em Intervalo Lírico, ele expõe
publicamente o que na verdade deveria ser expurgado, aquilo que
deveria sempre permanecer ob-scenu (fora de cena). Em Intervalo
Lírico, Linaldo põe à vista de todos as eviscerações de seu
maquinário poético e o lugar-comum de todos os seus ódios e amores.
Eis aqui o sentido maior de Intervalo Lírico: a busca de um
inter-valum, de um espaço de transitoriedade ética e estética, a
construção de uma metatopia, de um lugar sem julgamentos. É dentro
deste espaço que Linaldo quer que revisitemos a sua vida passada à
limpo. Linaldo tenciona liricizar a memória, expandir dentro da
física deste seu trans-espaço todas as suas vivências. Linaldo
Guedes reespacializa o tempo presente da Lírica para conter o seu
imaginário amoroso.
O livro como um todo, está montado
sobre a égide da reconstrução gestáltica, da reconstrução espacial e
pictórica dos fatos da memória. Não nos causa espanto o livro
iniciar-se justamente com um poema chamado “Pintura”:
teus traços singulares
pluralizam-se
no ocaso noturno do inverno
tua pele
à distância
tem o cheiro do entardecer em jacumã
teus traços singulares
protegem o verbo e o verso
do solitário poeta plural.
É mais do que nítida relação a entre a
singularidade da musa que pluraliza-se no ocaso do inverno e à
distância e o verbo e o verso do solitário poeta plural, ambos se
plastificando através da linguagem, ambos buscando construir novas
evocações metafóricas, metonímicas e sinestésicas.
Linaldo remonta o tempo da Lírica
buscando uma síntese plástica de matriz cubista. Reconfigura o ritmo
de seus textos como se buscasse para si algo das collages toscas e
violentas de Gleizes e Archipenko. Seu trabalho poético se faz com
materiais de natureza aparentemente irreconciliável.
Filosoficamente, porém, sua noção de
amor está mais próxima do Amour fou de Breton, do amor surrealista
de Robert Desnos e Paul Eluard, com sua libertação plena do erotismo
e proclamação da feminização do universo.
Linaldo trabalha com substratos
poéticos distintos para caracterizar cada uma das etapas do
relacionamento amoroso. A angst tortuosa do existencialismo
drummondiano aflora diversas vezes com força em versos como os de
Casamento (um tempo está brotando... / é um tempo que abandona / as
avenidas de cajazeiras / é um tempo que violenta / a ampulheta / um
tempo está mastigando / (minhas raízes) / é um tempo que não se
acomoda / na brisa do litoral / é um tempo que só fabrica /
calendários bissextos), Artifício ( as flores artificiais, / na mesa
/ o filtro sem água, / na pia / a geladeira sem carne, / na sala /
nós dois na cama: / artifícios filtrados em carnes conjugais.) ou
Santíssima Trindade ( pai, filho e mãe do espírito insano: / proteja
as dores e liberte a vida.) para caracterizar a trágica monotonia
cotidiana de uma vida conjugal, na forma de uma linguagem metálica e
abissal.
Veremos logo a seguir o poeta
abandonar paulatinamente a tessitura concisa drummondiana de versos
como A Flor e o Espinho (o amor / o amor / - todos os caminhos /
levam à dor / quando o teu cheiro sobra / ou o prazer vai embora / é
do amor que falamos / é a dor que escondemos / num caso / falta o
pedaço necessário / para se chegar ao paraíso / em outro sobra o
dicionário / para tentar explicar o sumiço da flor.) para atingir
maiores devaneios hiperbólicos, românticos, em poemas líricos quase
próximos da forma canção, em versos como os de A Carta (há quanto
tempo não lhe faço um poema, baby / será que cansamos de nós mesmos
/ e esquecemos de olhar para o farol? / será que não lemos mais
junto a alma de pessoa / e nem suportamos mais nossos ombros
poéticos em drummond? / que fizemos de nossos sorrisos: /
guardamos-los em gavetas invioláveis, / enferrujadas pelas
frustrações da vida? / há quanto tempo, baby, não pronuncio / seu
nome / será que faltam palavras para dizer / o que nunca cansou de
se afirmar em meu coração / há quanto tempo não faço amor com você,
baby / será que nossos corpos tornaram-se esfinges egípcias / e que
não há mais nenhuma descoberta a ser feita nas curvas de tua pele? /
há quanto tempo, baby / que perdi a noção do tempo / e tudo em volta
tornou-se / uma monótona e enorme ampulheta? / há quanto tempo, baby
/ que não olho o relógio / temendo confundir a hora de chegar em
casa / quando já não se tem mais casa / há quanto tempo / que tudo é
rotina angustiante / que tudo é ausência / e nem a literatura salva
/ há quanto tempo, baby / há quanto tempo, baby / há quanto tempo,
baby... ), chegando ao término numa espécie de apoteose
sexual-textual, exaltando as alegrias do amor e do casamento, em
versos diretos e secos como os de Diálogo Erótico (tuas pernas / já
se abrem mais flexíveis / enlaçam meus ossos / numa chave de desejos
/ com abertura para o falo / silencioso.) ou nos jogos de câmera e
de composição cubista de 3 Movimentos Para 1 Só Ato (tuas nádegas /
nada dizem / apenas / escondem minha glande / por sob sua grande /
angular).
Não é possível reduzir a escrita de
Linaldo Guedes a apenas um único registro. Sua textualidade é
construída através de fraturas, reentrâncias, avanços,
retrocessos... Linaldo monta seu coro de vozes amorosas sob um
rigoroso ordenamento cênico. E abre as vísceras do seu palco
meta-utópico para investigar a linguagem do homem.
Intervalo Lírico nos propõe uma
constante quebra de expectativas, seu trans-espaço, portanto, não
deixa de ser a alegoria de um espaço de frustração. O seu tempo
lírico fraturado nada mais é que um tempo de recalque, de retrabalho
agônico sobre a linguagem. O amour fou aqui não é um fim, mas o
liame condutor de um processo. Linaldo disseca o palco amoroso
através de metástases sobre a linguagem. Linaldo opera através de
todos os sentidos, como em “Teu sexo”:
V
I
S
Ã
O
triangular
do ponto mais
aciden
tal do
pra
zer
.
Em suas dobraduras espaço-textuais,
Intervalo Lírico foge do impressionismo comum amoroso. O teatro de
Linaldo Guedes é outro: o das hipertrofias musculares barrocas. A
poesia linaldiana parece sempre se constituir sob o signo do
estranhamento, do alheamento constante, do perpétuo reformular-se.
Como diria o próprio poeta, num texto de seu livro anterior, Os
zumbis também escutam blues: “um lápis / e um papel em branco /
resumem o segredo de minha vida: / uma palmeira imperial / que
cresceu / no século errado”. A poesia de Linaldo Guedes está
condenada a este perpétuo metamorfosear-se, a ser estrangeira dentro
de si mesma.
Consciente de suas carnes e prisões,
Intervalo Lírico usará este tema como revelação-motriz de sua
lírica: usando um leitmotiv dado por outro poema d’Os zumbis também
escutam blues, um poema chamado Hipótese (e se eu te amasse / como
um pássaro / ama a gaiola que o prende?), Intervalo Lírico
construirá as singularidades de seu edifício metamórfico falando de
jogos de espelhos e intertextualidades, de poesia e interpoesia em
constante deslocamento, de ouros e escombros no geh hin-nóm
existencial da fala de Linaldo Guedes. Eis a força maior de sua
palavra.
Recife (PE), 20 de março de 2004
DELMO MONTENEGRO
poeta, ensaísta e tradutor
autor de Les Joueurs de Cartes – Os Jogadores de Cartas
(Edições Bagaço, Recife, 2003)
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