Rio, 10 de novembro de 2001
O estilo do Lobo
Exortação aos crocodilos , de António Lobo Antunes.
Editora Rocco, 359 páginas. R$ 36
O escritor português António Lobo Antunes inventa uma escritura
que se inscreve no papel como partitura. Inspirado na estrutura sinfônica
da música, este autor cria um estilo musical e delirante, lírico e
raivoso, poético e desesperado. O livro “Exortação aos
crocodilos” insere-se na literatura de língua portuguesa com uma
autenticidade estilística que assombra, provocando desconcertante
estranheza. E somente ao longo de sua decifração percebe-se o
quanto este código a princípio desconhecido não só tem coerência
como é aturdido, belo — e extenuante. A leitura flui numa labiríntica
sucessão de vozes e sons, combinadas harmonicamente como fragmentos
de existências que ora se encaixam ora se estranham. Há consonância
e dissonância, porque, basicamente, o tom é o do delírio, da
alucinação, do sonho. A escrita como um surto, um êxtase sinfônico:
eis a marca de Lobo Antunes, que ele leva à máxima depuração
nesta obra, com técnica espantosa.
Estimado como um dos maiores nomes (entre os vivos) da literatura
mundial, este ex-psiquiatra, que introjeta muito da desestrutura da
loucura em sua literatura, é destas lendas que aos poucos tornam-se
mitos ainda em vida, aqui e ali, nos mais de 20 países em que tem
sido traduzido. Avesso a entrevistas, isolado do mundo em seu
apartamento em Lisboa, não ao acaso Lobo Antunes cita
Louis-Ferdinand Céline, o eterno maldito escritor francês, como o
eleito. Em suas personalíssimas elaborações formais, os dois
pouco se assemelham, mas trazem o estilo seco e polêmico, certa
virulência, uma assumida infelicidade e toda a certeza da miséria
humana. Na França, por exemplo, a imprensa chegou a coroá-lo, Lobo
Antunes, como “o Céline português” — e nisto era só
elogios.
Em “Exortação aos crocodilos”, o autor, que quando concede
entrevistas entrevê todo o desencanto que justamente encanta a sua
obra, dá voz a quatro mulheres, assombradas por reminiscências
tristes e massacradas pelo mundo dos homens. A primeira, Mimi, é
uma surda só capaz de ouvir o som das coisas, jamais das pessoas, e
totalmente destituída de charme, mas escolhida por um milionário
para o casamento. A segunda, Celina, tem a infância roubada por um
marido velho que a desposa ainda jovem, e vinga-se traindo-o com seu
sócio (justamente o marido de Mimi), para depois bolar crime mais
cruel. A terceira, Fátima, é sobrinha de um bispo conspirador, e a
quarta, Simone, jovem gorda e complexada, acredita ter encontrado a
saída de emergência para a sua vida miserável no namoro com o
motorista de Mimi. Entre traições e incestos, o que elas têm em
comum são homens desagradáveis e violentos, engajados na tortura
de comunistas e na realização de atentados de direita, movidos
pela nostalgia do regime salazarista. Eis outra das marcas de Lobo
Antunes, a renitente crítica política à pátria.
A leitura permite o ingresso na estrutura psíquica de cada uma das
mulheres, como se fosse possível desfiar a tessitura do seu imaginário,
sem nunca parar, pois o poço jamais tem fundo. O efeito é quase
lisérgico, pois desenrolam-se pensamentos, emoções, nostalgias,
urgências, pulsões de morte; a miséria humana em todo o seu
dissabor. É como se o escritor levasse para a literatura cada
frase, vírgula, exclamação que pontuam o pensamento, dada a
dispersão da mente do homem, seu descontrole e verborragia
inauditos. O que impressiona é que, apesar desta loquacidade do
discurso da razão/emoção, o estilo de Lobo Antunes não é
barroco, mas enxuto, discípulo que é, confesso, de João Cabral de
Melo Neto e sua poesia calcada no substantivo. Ele derrama e
resseca, acelera e recua. Dá voz às mulheres, deixa-as tagarelar
(mentalmente), para depois dizer que o que busca é o silêncio,
como se procurasse o grau zero da linguagem, uma linguagem não
inflacionada por adjetivos, advérbios, desesperos.
Toda esta narrativa, que traz um pouco da esquizofrenia, do caos
diante do que é realidade ou fantasia (pois no romance nem sempre
é possível detectar esta fronteira), é respaldada por inovações.
Exceto pelo primeiro parágrafo, os seguintes, de um mesmo capítulo,
começam com letra minúscula, não terminam com ponto, têm parênteses
abertos para abrigar uma ou outra voz, ou um sonho. Outra invenção
é a frase, ou mesmo a palavra, interrompida. Este conceito da
composição em fragmentos não-lineares é meio pós-moderno, mas há
aí uma preocupação com o entendimento, nada havendo que não
possua sentido, que não dê a senha para a compreensão da trama,
enfim, um virtuosismo dos mais refinados, destinado aos aficionados
do estilo.
|
|