Luiza Mendes Furia
[in O Estado de
São Paulo, 06.03.1999]
Livro desnuda `eu-feminino' de
Chico
Professora Fontes desvela o discurso do compositor nas canções
em que empresta voz poética à mulher
LUÍZA MENDES FURIA
Elas se chamam Carolina, Januária, Luísa, Angélica,
Ana, Rita, Madalena, Bárbara. Outras não são nominadas.
E são muitas. Aparecem como mãe, filha, amada, prostituta,
irmã, escrava. Às vezes, choram sua dor, dramáticas,
como a Joana de A Gota d'Água, interpretada por Bibi Ferreira no
teatro; outras, dialogam com o homem, lúdicas ou desesperadas, ou
com outras mulheres, como as personagens de Elba Ramalho e Marieta Severo
no filme Ópera do Malandro. Outras vezes, são o sujeito inatingível
do amor do homem ou a ingrata que o abandonou. Extremamente diferentes,
têm um ponto em comum: falam por meio da poesia de Chico Buarque.
É nessas vozes que Maria Helena Sansão Fontes centrou o livro
Sem Fantasia - Masculino-Feminino em Chico Buarque (192 págs., R$
23,00), que está sendo lançado pela Graphia, em sua coleção
Temas e Reflexões.
Mineira radicada no Rio, Maria Helena, de 53 anos, professora de Literatura,
passou três anos aprofundando-se no assunto, sua tese de doutorado
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, defendida em 1997.
Sempre foi muito comentado o fato de Chico "encarnar" a mulher nas letras
de suas músicas e cantar um discurso feminino, o que não
é muito comum na MPB - em que ou se exalta a mulher ou se denigre
sua imagem, como em Rosa, de Pixinguinha com Otávio de Souza, ou
Vingança, de Lupicíno Rodrigues. Foi a partir dessa faceta,
pouco estudada até hoje, de uma admiração antiga pela
obra de Chico e da pergunta "por que ele se traveste no elemento feminino
tantas vezes?" que surgiu a tese, que também o confronta com outros
compositores.
"A presença da mulher é muito forte e valorizada na obra
de Chico Buarque; o que eu quis foi provar essa valorização
e pesquisar suas origens", comenta Maria Helena. Para tanto, percorre diferentes
momentos da obra do compositor. "Ele consegue pôr-se no lugar da
mulher, tem extrema sensibilidade para perceber a opressão como
ela percebe, sem partir de um ponto de vista estritamente masculino, mas
usando seu eu-masculino, de homem esclarecido do seu tempo, para enriquecer
as experiências", observa.
"Houve algumas questões que me seduziram na obra dele", diz Maria
Helena. "Ela é rica, enorme, mas preferi deixar de lado a parte
política, social." Apesar disso, ela envereda, sim, ainda que com
menos profundidade, por outros caminhos da obra de Chico, dotado de "vários
eus-líricos", por meio dos quais se manifesta.
Dessa forma, chama a atenção para a identificação
do poeta com elementos que transgridem o convencional, desde o engajamento
político- social contra a repressão dos anos 60 e 70 até
as situações em que "ele se solidariza com o elemento marginal,
manifestando o sentimento do malandro, do pivete, do operário oprimido,
da prostituta". E da mulher, claro, também oprimida e marginalizada,
econômica ou culturalmente.
"Meu principal objetivo foi comprovar que a valorização da
mulher na obra de Chico Buarque transcende a simples e convencional escolha
do sexo oposto como musa inspiradora e objeto de exaltação
poética", afirma.
Ao lado dessa atitude, presente nas canções de inúmeros
poetas e compositores, há um detalhe importante que o distingue
dos demais quando o assunto é a mulher. "Assumindo o eu-feminino,
Chico Buarque pôde melhor expressar as insatisfações
da mulher, exaltar-lhe os poderes, compreender-lhes as transgressões
e denunciar as injustiças de que é vítima", explica.
E ressalta: "A problemática da mulher não constitui uma tônica
nas décadas anteriores a Chico Buarque; não se observa nessa
época, num mesmo autor, a reincidência de composições
em que o poeta assuma a identidade feminina em defesa de seus direitos."
Ela também buscou outras explicações para o "lado
feminino" do compositor e concluiu que ele é impulsionado inconscientemente
por arquétipos que há na mente de qualquer ser humano, como
o da Grande Mãe, que inclui "a figura acolhedora, maternal e sedutora
e sua contraparte devoradora, persecutória e aprisionante".
Sem Fantasia, no entanto, não se atém apenas à voz
feminina de Chico Buarque. Trata, igualmente, de sua voz masculina, sempre
marcada pela inquietação proveniente de sua relação
com o mundo. Analisa as canções, numerosas em sua obra, que
falam do relacionamento amoroso, ora em tom profundamente dramático,
ora com leveza e bom humor, sem nunca abandonar um profundo lirismo.
A professora diz que não teve a pretensão aprofundar-se na
parte musical, apesar de, evidentemente, as letras serem intimamente ligadas
às melodias. "Embora reconhecendo a autonomia das letras em seu
valor literário, dificilmente conseguiria dissociá-las do
apoio melódico, que muitas vezes dita a métrica, a acentuação
e a divisão de sílabas, acrescentando ao poema algumas características
inexistentes à simples leitura sem acompanhamento musical", enfatiza
no livro.
Trata-se de um livro de leitura agradável, que busca esclarecer
o assunto sem aborrecer o leitor com academicismos - para torná-lo
acessível ao leigo, a autora fez alterou a linguagem da tese - e
vem, de certo modo, quebrar um tabu ainda existente no meio acadêmico,
onde letra de música não é considerada poesia de verdade.
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