O poeta e a canção
Folha de São Paulo,
30.7.2000
Quando Vinícius
de Moraes morreu, lá se vão dez anos, foi como se minha geração
inteira tivesse perdido um parente íntimo, daqueles que nos instruíram
nos primeiros namoros, que nos acompanharam em todas as emoções.
Toda lembrança romântica
ou nostálgica tinha como referência uma música de Vinícius.
A primeira serenata, a primeira
paixão platônica, a primeira namorada, o primeiro boteco de
boemia, tudo passava pelo poeta Vinícius.
Lá em Poços
de Caldas (MG), Vinícius de Moraes só não era unanimidade
quando se tratava de qualificar quem era o maior poeta brasileiro.
A maior parte da turma ficava
com Carlos Drummond de Andrade, alguns com Manuel Bandeira, dois cruzadistas
ficavam com os concretos.
Os novos não chegavam
até nós. Mário Faustino era uma lenda que ninguém
lera, porque a distribuição do carioca "Jornal do Brasil"
não chegava tão longe.
Carlos Penna, o homem azul
de Recife, também era uma referência distante.
Confesso que, se tivesse
lido o poema que Bruno Tolentino fez para a morte de Anecy Rocha, o teria
incluído imediatamente nas nossas discussões sobre o maior.
Mas o que batia no peito,
repicava no fígado e cobria de emoções a razão
era Vinícius de Moraes.
Não era apenas o
poeta maior, era o guia. Todos queriam ser como Vinícius, amar e
ser amado como Vinícius, beber como Vinícius.
Privilégio
Quando o Newton, que estudava
em Ouro Preto, contou que passou uma noite bebendo com Vinícius
e com um estudante chamado João Bosco, a gente pedia para ele repetir
toda hora cada gesto que se lembrava do mestre.
Os puristas torciam o nariz.
Até hoje não aceitam que a letra de música tenha valor
literário. E Vinícius sempre foi contra limitações
e formalidades.
Na Música Popular
Brasileira, não teve ninguém que o superasse, apesar dos
grandes Luiz Peixoto e Orestes Barbosa, e dos clássicos contemporâneos,
como Aldir Blanc, Chico Buarque, Caetano, Paulo César Pinheiro e
Hermilo Bello de Carvalho.
A bossa nova teve Tom Jobim
e João Gilberto.
Mas a marca maior do movimento
foi Vinícius. Ele deu a temática, o modo de vida carioca,
a paixão desenfreada e moderna.
Com ele, Tom Jobim atingiu
seus maiores momentos. Depois, cada novo compositor que se aproximava de
Vinícius conseguia alcançar, com ele, o seu auge.
Tome-se toda a produção
de Carlos Lyra. A parte mais expressiva, de longe, são as parcerias
com Vinícius.
Baden Powell foi o maior
violonista popular do século. Mas, nas composições,
jamais conseguiu igualar o período em que seu letrista foi Vinícius.
Foi o letrista clássico
da dor-de-cotovelo, o autor das mais expressivas cantigas infantis modernas
("Era uma casa, muito engraçada / não tinha teto, não
tinha nada"), o homem das críticas sociais.
Qualidades
O curioso na história
é que Vinícius não era apenas o grande letrista e
ideólogo de uma nova estética. Era também um compositor
dos mais expressivos que apareceram.
Compôs poucas melodias,
mas todas elas obras-primas de simplicidade musical, de equilíbrio
estético.
Como "Valsinha", curiosamente
uma obra prima de melodia, dele, em uma obra-prima de letra, de Chico Buarque-,
"Serenata do Adeus" ("ai, a lua que no céu surgiu / não foi
a mesma que partiu"), um clássico da dor-de-cotovelo, com letra
e música dele.
Assim como "Cem por cento",
nosso hino nacional atual ("Há tanta gente que diz, coisas dela
/ mas essa gente que diz cai por ela"), ou esse primor de equilíbrio
melódico criativo que é "Pela luz dos olhos teus".
Popularização
Confesso que os de minha
geração torcemos o nariz quando ele se aproximou de Toquinho.
Nada contra Toquinho, que
já surgia como um belíssimo violonista e um parceiro de Chico
Buarque em algumas músicas consagradas em nossas serenatas. Mas
é que parecia que o velho mestre estava começando a se cansar.
Passou a produzir em larga
escala e, pior do que isso, a fazer um sucesso danado.
No fundo admito aqui, de
público: o que nos incomodava é que Vinícius deixava
de ser "nosso".
Ele passava a ser amado
também pelos freqüentadores de cervejarias, por aquele povo
barulhento e alegre que gostava também de Luiz Ayrão e Paulo
Diniz.
E o pior é que as
músicas eram um embalo só.
Mas até os mais críticos
da dupla esquecem esse preconceito besta e colocam-se de joelhos quando
alguma rádio desavisada toca "Rosa Desfolhada" ("Tento compor, com
nosso amor, dentro da tua ausência"), dele e de Toquinho.
Foi o dia em que Toquinho
virou Tom Jobim, e Vinícius mostrou que um poeta nunca envelhece.
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