Leonel Neves 

POST-SCRIPTUM
       
                                                                                   
 À memória de Ruy Cinatti

* Para ser lido como uma carta a Xanana Gusmão
ou ao mais longínquo dos seus sucessores.

… se há já mais de vinte anos não te vejo
fui teu vizinho, sei como és:
familiar da morte temporã,
recordo-me que dela não tens medo
(da dos pais, da dos filhos, nem da tua),
desde que seja morte natural
(doença, acaso ou catanada justa),
mas não entendes tiros pelas costas
ou, pela frente, atado a uma árvore.
Sei que homens como tu, mas só na cor,
chacinaram, em menos de vinte anos,
quase metade dos irmãos mauberes,
mas acreditas que, apesar de mortos,
continuam contigo, e tu com eles
ao morrer, porque não há outros deuses
ou se há são todos cegos, mudos, surdos;
e o Paraíso está na tua terra,
apenas mais gostoso enquanto há vida
– comida, sono, amores e canções –
e, mesmo curta, a vida é tão sagrada
que nunca conheci um menino órfão
(primos em quinto grau serão os pais,
se primos não houver, há os vizinhos);
tudo o que nasce tem direito à vida
até que a morte inevitável chegue;
mas agora, que surge prematura,
injusta, subumana, impessoal,
tu, que não choras e não rezas, luta!

Talvez saibas algumas orações
aprendidas do digno missionário
que te deu uma língua, um alfabeto
e, com auxiliares, um ofício
e te falou do céu (onde está ele?)
e também do inferno (está aí!)
e te contou dos anjos (onde param?)
e dos demónios (esses, já os viste),
do Diabo que até parece vivo
e de Deus, morto ou só adormecido
porque se, omnipresente, omnipotente,
o quisesse, acabava o genocídio.
Tu, que aprendeste honestamente Cristo,
te converteste e adoptaste o nome
de algum velho colono deportado,
ficando mais católico por dentro
do que muitas beatas do meu povo,
tu, que já não choras mas já rezas, luta!

Talvez, quando desceste da montanha
e encontraste trabalho na cidade,
mesmo de “funcionário do Governo”
de um País longe que foi ter contigo,
ou que, vendo guerreiros bem fardados,
com comida, divisas, botas e armas,
foste “soldado de segunda linha”
e tiveste nas mãos uma espingarda,
soubeste um hino e viste uma bandeira
cuja sombra pisar te era pecado,
não podias adivinhar que irmãos
de acaso, mas bem-vindos, tolerados,
pudessem esquecer-te alguma vez…
Só agora, que o mundo é mais pequeno
e a tevê leva a casa de esses e outros
novas da meia-ilha matadouro,
é que esses teus irmãos coram e choram,
improvisam vigílias e protestos
e, sinceros, lembrando os seus avós,
apelam ao conclave das nações
que os direitos humanos reconhecem,
mas te vêem minúsculo, tão longe,
ínfimo meio-ilhéu, tão sem dinheiro,
vagamente suspeito de petróleo…
Irmão timor, tu que não choras, luta!

Decerto não te lembras já de mim,
frouxo neto de heróicos marinheiros
que, há para aí uns quatrocentos anos,
levaram a Timor a cruz e a espada,
que lá plantaram, grávidas e férteis
(uma espada que teimas em erguer
e uma cruz em que irão crucificar-te).

Há já mais de vinte anos não te vejo,
mas fui teu bom vizinho e não te esqueço.
Suponho que me achaste até simpático,
porque sabias que, apesar de branco,
um vago primo de um trisavô meu
casou com uma tua trisavó
e, no decurso destes quatro séculos,
houve outros casos… Eu só lá passei,
sem cruz ou espada, mas com amizade,
dizendo “olá, bom-dia, até à vista”;
e agora, irmão timor, a minha mágoa
é não saber como ajudar-te, com
uma ideia, uma arma, uma lembrança.
Impenitente adepto de palavras,
já me ocorreu mandar aos guerrilheiros,
se o encontrasse num alfarrabista,
um dicionário dos meus trisavós,
cheio de palavrões e de calão,
desses que os missionários não ensinam,
para que não morresses, como morres,
dizendo em português palavras lindas:
adeus, amor, amigos, liberdade…
Mas choro: tens, como único aliado,
a montanha, que em si te esconde tanto
que os outros do seu ventre não te arrancam
e consente que lutes… Vive e luta!

Possa um dia a montanha desabar
sobre as planícies, como as cheias fazem,
com ondas de ribeira e crocodilos,
e haja vulcões, tufões e terramotos,
que matem só os que te andam a matar-te
e te deixem viver… Entanto, luta,
porque a esperança, vértice da vida,
só a lutar podes mantê-la acesa!

Com um abraço avulso mas fraterno…

      Lisboa, 1 Dez 91

 
(In Memória de Timor-Leste, Pedra Formosa, Edições, Lda, 1989 ISBN 972-8118-15-5)
 
 
Remetente : Antonio Pedro Braga 

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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  23 de dezembro de 1997