Luiz Ruffato
As fronteiras existenciais de
Ruffato
Com o lançamento de dois
romances de uma vez, escritor dá largada em projeto ambicioso que
une literatura e sociologia
Cláudia Nina
Jornalista
Nas histórias do escritor
mineiro Luiz Ruffato, a geografia dos lugares, das casas e das
cidades não é apenas cenário. O meio se confunde tanto com a vida
que fica difícil saber onde começa a rua e terminam as pessoas, como
acontece em Eles eram muitos cavalos (Boitempo), que descreve
fragmentos do cotidiano em São Paulo. A metrópole mistura-se ao
sofrimento dos habitantes mais simples, tornando-se protagonista. Em
seu novo projeto, o autor segue a mesma direção: mapear o
dilaceramento emocional dos personagens, a maioria operários ou
agricultores, a partir da interação entre o íntimo e o social, o
mundo ''de dentro'' e o ''de fora''.
Por ''projeto'', entende-se uma
série de cinco livros com o título de Inferno provisório, que se
inicia com dois já lançados: Mamma son tanto felice e Mundo inimigo.
Os dois volumes recuperam escritos de outras obras como Histórias de
remorsos e rancores e (os sobreviventes), mas ganharam um novo
formato ''embaralhado'', como diz o autor, acrescidos de outros
textos. Em ambos, o espaço onde tristemente vivem e morrem os
personagens se espalha nas fronteiras existenciais que limitam o rio
e a estrada; o quintal e o a rodoviária; o interior e a capital.
O primeiro volume é ambientado
em Rodeiros, em Minas, e seus arredores. O fio condutor das
histórias é a derrocada do pequeno agricultor, mais especificamente
os imigrantes italianos pobres e seus descendentes, frente à
modernização, diante de um presente sem futuro e de um passado
arruinado. Outro ponto em comum é que todos os textos, embora possam
ser lidos separadamente, complementam-se uns aos outros. Daí a
impossibilidade técnica de defini-los como ''contos'', unidades
fechadas em si mesmas. A idéia parece ser a de fazer um
quase-romance desestruturado, de forma que o gênero fique na corda
bamba das definições. Marca, aliás, da sofisticada literatura de
Ruffato.
Em ''Aquário'', do primeiro
volume, o autor recupera um longo diálogo entre um filho, já adulto,
e sua mãe, na estrada, dentro de um carro. Saem ambos de Cataguases,
às 5h16, e daí seguem numa viagem no espaço (Leopoldina, Laranjal,
Muriaé...), e no tempo das experiências de cada um. O passado surge
de repente em fragmentos de memória que vão encaixando as peças do
mosaico das paisagens vividas, montando um quadro familiar carcomido
por fragilidades emocionais, financeiras e sociais - as mortes, os
abandonos, os rancores, os desentendimentos etc.
As mudanças tipográficas ou os
parênteses avisam quando um pedaço disperso de passado está
irrompendo no presente. Em vez da cronologia, obedece-se apenas ao
tempo psicológico, que dita o ritmo das lembranças. E, assim, em vez
de construir uma história, Ruffato prefere desconstruí-la, ou seja,
decompor o esquema início-meio e fim de forma não-linear,
embaralhando vozes e vivências.
Um minucioso detalhamento
reproduz em retratos cruéis e infelizes o perfil de lugares, coisas
e pessoas, criando em tudo uma atmosfera ensombrada, de onde foram
tirados a luz e o verniz. Como em ''Sulfato de morfina'', também do
primeiro volume, em que a descrição de uma velha senhora lavadeira,
doente e cansada, beira o grotesco.
O segundo volume - O mundo
inimigo - reedita Minas como cenário. Agora o foco central é
Cataguases (cidade onde nasceu o autor). Ali, espremidos no cortiço
do Beco do Zé Pinto, os personagens se dividem entre os que ficaram
no interior e os que se lançaram em busca do ''graal'' - as cidades
grandes, ''comedereiras de gente''.
Ruffato, ele mesmo um imigrante
vivendo em São Paulo há muitos anos, parece conhecer de perto cada
centímetro quadrado do mundo que descreve, capturando o lento
desabar das casas e das almas. Como neste trecho de ''Um outro
mundo'', que fala do que sobrou da vida de Zé Pinto: ''As casas
estão caindo aos pedaços, sim. Telhas rachadas. Reboco lascado. Piso
desdentado. E a imundície? O mau cheiro percebe-se da rua (...) O
Chevette está lá, mofando na garagem, o motor enferrujado, a bateria
arriada''.
Outro bom exemplo da habilidade
do autor em descrever tipos e situações do interior está em ''O
barco'', que traz pessoas como Marlindo, que comeram, como gosto, o
pão que o diabo amassou, e que deram duro para ''engrenar como
gente''. Ou Oswaldo, ''de alma irremediavelmente condenada'', ou
ainda o doutor Romualdo, falado na cidade inteira por ''caçar
mulher''. Nesta história, igualmente fragmentada como todas as
outras, aparece com ênfase o quintal, que tem papel importante na
geografia literária do autor.
Afinal, é lá onde está enterrada
a infância e com ela as promessas de felicidade. É de lá que partem
os sonhadores em direção à cidade grande, margeando o Rio Pomba e a
estrada: ''O quintal se expande às margens do Rio Pomba, imundo de
pé-de-galinha, marmelada-de-cachorro, capim-gordura, assa-peixe,
vassoura, capim-angola, que rastejam por entre mangueiras,
abacateiros, abieiros, ingazeiros, goiabeiras, amoreiras e
pés-de-carambola. Debruçadas sobre as águas, do outro lado, as
industriarias casas da Vila Minalda, a estrada para Leopoldina, para
o Rio de Janeiro''.
Interessante é como as histórias
se comunicam entre si mesmo estando em livros diferentes. Uma dor
aqui parece transparecer ali; replicam-se nomes e circunstâncias. As
ruínas de uma história se amontoam no quintal de outra e assim por
diante. Em ''O segredo'', por exemplo, lê-se um trecho que bem
poderia ser a descrição de qualquer um dos personagens de qualquer
um dos volumes: ''Perdi minhas antigas referências, o sítio, meus
pais, meus irmãos, a paisagem da minha infância... E não acrescentei
nada a isso. O que resta do meu passado? Ruínas... Apenas
ruínas...''
Inferno provisório continua em
mais três livros, dois dos quais já estão prontos e devem seguir a
mesma estrada, na encruzilhada das experiências ''de fora'' e ''de
dentro''. O resultado da investigação sociológica, além de ser um
estudo sério sobre os impactos da industrialização na subjetividade
de pessoas absolutamente comuns, é um dos melhores produtos da
literatura brasileira contemporânea. Em forma e conteúdo.
Mamma, son tanto
felice
Luiz Ruffato
Record
176 páginas
R$ 25,90
O mundo inimigo
Luiz Ruffato
Record
208 páginas
R$ 25,90 |
*Cláudia Nina é professora visitante da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
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