<trigo.trp@terra.com.br> Bio-bibliografia Crítica & ensaio
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Cordelista do caos urbano e do cotidiano banal O mel do melhor, de Waly Salomão. Editora Rocco, 124 páginas. R$ 22 No auge do tropicalismo, em 1970, quando morava no mesmo apartamento de Gal Costa em São Paulo, Waly Salomão foi preso com uma “bagana”. Numa cela do Carandiru, rabiscou os poemas do que seria seu livro de estréia, “Me segura qu’eu vou dar um troço”, que, lançado no Rio no ano seguinte, teve projeto gráfico do amigo Helio Oiticica. Era o início de uma carreira literária marcada pela inquietação, embora, até hoje, Waly seja mais lembrado como letrista de canções de sucesso, como “Talismã” e “Vapor barato” do que por sua diversificada e desafiadora produção poética. Trinta anos depois, Waly
volta às livrarias com uma justa homenagem: a antologia “O mel do
melhor”, com textos do primeiro ao último — até aqui — livro
(“Tarifa de embarque”, de 2000). O volume é dedicado a Oiticica,
de quem Waly escreveu a biografia (“Qual é o parangolé”)
e organizou a obra póstuma “Aspiro ao grande labirinto”. Na introdução,
batizada de “Réu confesso”, o poeta pede ao
Vendo o mundo como “jogo que se desarruma”, a poesia de Waly só é fácil na aparência; contrária a fórmulas e receituários, ela na verdade exige assimilação lenta. Não é à toa que rejeita o rótulo de poeta marginal e udigrúdi (que serviu para acobertar tanta poesia engraçadinha e sem alma). Alma é o que não falta aos textos de Waly. Consciente da (des)inserção
social do poeta — “Aprende a palidez altiva/ e o sorriso aloof/ de quem
compreende as variações dos ventos da/ mídia” — Waly
mantém-se coerente à sua rebeldia: “Vou onde poesia e fogo
se amalgamam/ Sou volátil, diáfano/ avasivo”. Ele faz uma
espécie de cordel do caos urbano, extraindo do cotidiano mais banal
a matéria-prima de sua poesia. São versos e
Autodefinido como “gigolô de bibelôs” e “surrupiador de souvenirs”, o baiano absorve e reprocessa referências múltiplas, de Blake a John Ashbery, de Gregório de Matos aos irmãos Campos, de Joan Brossa a João Cabral. Abertura à diferença que veio do berço: nascido em Jequié, na zona da caatinga baiana, Waly é filho de sírio muçulmano — um comerciante de tecidos que trazia tatuada no braço a frase “Alah Akbar” (“Deus é grande”) — com beata sertaneja. A coletânea, aliás, quase foi batizada “Tenda do sultão das matas”. Outro de seus livros se intitula,
muito apropriadamente, “Armarinho de miudezas”. Waly não pretende
construir uma grande obra; ele entende a poesia como intervenção,
ato quase político com poder de transformar nossa percepção
da realidade, se não a própria realidade. Como editor, Waly
também foi um agitador: lançou “Alegria, alegria”, o primeiro
livro de Caetano Veloso, e “Os últimos dias de Paupéria”,
de Torquato Neto, seu parceiro na revista literária “Navilouca”
— da qual extraiu “Na esfera da produção de si mesmo”. Como
ele diz em “Amante da algazarra”, Waly “faz versos como quem morde”. Para
apreciar “O mel do melhor”, o leitor deve ser carne a se deixar ser mordida.
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In O Globo,
Literatura, 23.06.2001 |
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Talento para renovar em versos o ‘eu lírico’ O ar das cidades , de Sérgio Alcides. Nankin Editorial, 72 páginas. R$ 15 Carioca radicado desde 1998 em São Paulo, onde cursa doutorado em história social na USP, Sérgio Alcides faz uma poesia marcada pelos signos do trânsito e da urbanidade, o que já explicita o título de seu livro de poemas “O ar das cidades”. São versos que tematizam o espaço, não somente o espaço público e o privado, mas também o espaço interior. Muitas vezes isso se dá de forma enigmática, causando um certo estranhamento no leitor. É característica comum em quem faz poesia com voz própria, preferindo trilhar novos caminhos a seguir receitas prontas. Não que o autor esteja imune a influências e leituras. Como ressalta o prefácio de Adolfo Montejo Najas, sua poesia impressiona não somente pela imaginação verbal como pela renovação nada ingênua do “eu lírico”, que permite que Sérgio Alcides soe cerebral mesmo quando se utiliza da palavra como expressão de sentimentos. Se é verdade que cada poesia inaugura um certo tipo de leitura, no poema “Metamorfoses” a respiração que o poema sugere se funde com o seu próprio conteúdo: “Amar desempena o rochedo/ desarrumado que me fossiliza./ Saio já daí! Escorrego feito limo./ Vou entre a pedra e o risco da chuva lisa./ Crio vida no mineral destino/ que agora respira”. “O ar das cidades” impressiona, também, pela importância da visualidade e pela reapropriação de uma certa “épica do instante”, típica da poesia dos anos 70, sem cair contudo nas armadilhas da gracinha e do verso fácil. Ao contrário, são versos sérios e marcados por uma tensão contínua, obtida através de aliterações inventivas e mudanças bruscas de registro semântico: Alcides puxa a todo momento o tapete dos pés do leitor, que nunca sabe para onde o verso seguinte o conduzirá, renovando a velha máxima: poesia é risco. Nesse sentido, trata-se de uma obra consciente de que o estranho pode se alojar em qualquer escaninho da realidade, e de que mesmo a superfície das coisas mais banais pode esconder sentidos profundos e perturbadores: “Abro a porta do velho cheio/ e desperto/ Revém e disperso./ Nunca tão rente./ Minha pele, qual limite?/ Meu redor, quem habite?/ O armário me desarma/ e aberto” (“Guardado”). Esse efeito de distorção/revelação
da realidade através da palavra está presente ainda em versos
como “O claro maiô, a touca justa, a mera raia/ toda essa geometria
para o nado.../ Nada esconde o ladrão por onde a vida escoa” (“Poema
trampolim”) e no excelente “Jogo dos sete erros”, texto em prosa poética
que fecha o volume. Do começo ao fim, “O ar das cidades” é
um livro que exige releituras, o que já é uma qualidade rara
na nova poesia brasileira. |
In O Globo, Literatura
Literatura, 08.07.2001 |
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24.06.2001 Duas dezenas de exercícios líricos O erotismo de Olga Savary está de volta nos 20 contos de 'O Olhar Dourado do Abismo' |
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