Lupus et agnus
Fragmento de um questionário:
Francisco, personagem de um poema longo,
Psi, a Penúltima, sai de dentro do poema e vem
conversar com o autor, um certo SF, que também é Francisco. |
01. Francisco:
Muito estranho o senhor tenha escrito um poema em defesa da raposa,
um bicho reconhecimento mau, cruel, perverso; tanto pior, uma raposa doida,
faminta, atacando as cacimbas-de-beber, morta de sede. Melhor o
senhor tivesse gasto suas energias em defesa do cordeiro, não?
SF:
Senhor, eu não posso defender o
cordeiro, em hipótese alguma, por uma razão muito simples: o
cordeiro é culpado! Antes mesmo que o senhor dê um salto bem acolá,
dê-me licença para justificar.
02. Francisco:
O quê? O senhor enlouqueceu? Fedro errou?! Culpado, meu caro, o
culpado é o lobo! O lobo é culpado.
SF:
Vejamos, senhor, calmamente, o
que nos diz Fedro: Ad rivum eumdem lupus et agnus venerant, siti
compulsi: A um mesmo riacho, vieram compelidos pela sede, o lobo
e o cordeiro. Ora, senhor Francisco, Fedro anuncia, logo de entrada,
que o lobo é o chefe!
03. Francisco:
O chefe?!
SF:
Sim! Todo mundo sabe que a ordem
natural dos nomes é a alfabética, exceto se houver prioridades de
títulos e patentes. Então, quando Fedro rompe a ordem natural dos
nomes e coloca o "lupus" na frente do "agnus", patenteia ao lobo o
grau de chefe. Em segundo, mesmo com a advertência de que o "lupus"
é o chefe, o "agnus" (cordeiro) não se contém, avança para a água
como se não fosse um subalterno... um desrespeito, uma imprudência.
Uma provocação!
04. Francisco:
Fedro esclareceu: siti compulsi, no plural, compelidos pela
sede, "a pulso", os dois a morrer de sede!
SF:
Maior que fosse a sede, meu caro,
cumpria ao cordeiro aguardar, prudentemente, bem escondido, alguns
minutos, enquanto o lobo bebia. Fedro já avisara: o lobo é o chefe!
No intuito de provocar, o cordeiro não se conteve.
05. Francisco:
Concordo que teria sido prudente esperar, mas era o tal siti
compulsi... Mas veja, prudentemente, o cordeiro postou-se
abaixo, a jusante, bebendo o sobejo do lobo, sem lhe oferecer
qualquer perigo... Superior stabat lupus, longeque inferior
agnus.
SF:
Não foi bem assim, senhor. O
lobo estava acima... com medo do cordeiro?! Certamente! Nunca vira,
ele, lobo, tamanha audácia. Além do mais, todo mundo sabe que esses
vírus medonhos contaminam uma água em todas as direções, subindo,
descendo. O lobo, ante tamanha provocação, com toda a calma do
mundo, pergunta ao cordeiro: Cur, inquit, turbulentam fecisti
mihi aquam bibenti? "Por que, perguntou, me toldas a água de
beber?" Sabe o que o cordeiro aprontou?
06. Francisco:
Diga, por favor. Começo a ficar assombr...
SF:
O cordeiro, em vez de meter o pé
na carreira, aproveitando a generosidade do lobo; pois bem, o tal
cordeiro, na maior desfaçatez, resolveu discutir com o lobo.
Imperdoável, a interpelá-lo. Veja: Qui possum, quæso, facere
quod quereris, lupe? A te decurrit ad meos haustus liquor.
"Como posso, por favor, fazer o que sugeres, ó lobo? O líquido flui
de ti para mim". Um atrevimento, senhor! Acaso o cordeiro seria
diplomado em topografia, em hidráulica? Exibiu o CREA, os
referenciais de onde estudara?! Sabe, meu caro Francisco, o cordeiro
só poderia estar mesmo a serviço de potências estrangeiras ou de
algum outro lobo, inimigo, é claro. Nunca se viu tanta insolência. O lobo ainda lhe
deu mais uma chance de fuga:
07. Francisco: —?
SF:
Ante
hos sex menses male, ait, dixisti mihi.
"Há seis meses falaste mal de mim". Uma segunda chance, de pura
generosidade jamais vista, senhor! O lobo tinha certeza de que o
cordeiro havia de botar sebo nas canelas e desaparecer no matagal.
Sabe o senhor o que o cordeiro aprontou? Mais uma agressão, agora
travestido de Oficial do Registro Civil ou especialista em
processualística de prazos:
Equidem,
natus non eram.
"Com certeza, eu não era nascido!" Quer dizer, senhor, o cordeiro,
de alta perversidade, queria mesmo era desmoralizar o lobo; respeito
nenhum! O lobo, de pura generosidade, ainda lhe deu mais uma chance
de fuga, pura perda de tempo:
Pater,
hercle, tuus — ille inquit — male dixit mihi.
"Por Hércules, o teu pai falou mal de mim".
08. Francisco: —?
SF:
Foi demais, senhor. A provocação
irresistível, a defesa da honra do lobo, a lesa-majestade, um grande
rol de crimes do atrevido. O senhor acha pouco?!
09. Francisco:
Veja, em vista do
que o senhor narrou, vamos chamar o fabulista, Fedro, a se explicar.
(E, num rápido estalar de dedos, a resposta de que Fedro mandara
dizer que, no tempo dele, nunca houvera isto de defender bichos
reconhecidamente perversos, lobos e raposas. Por isto mesmo, nada
a esclarecer). Em vista disto, resolveram chamar as partes, o
lobo e o cordeiro. O cordeiro, morto pelo lobo, obviamente não
compareceu.
10. Francisco:
Senhor Lobo, o que V. Exa. tem a dizer?
O lobo:
Senhor Francisco, estou certo de que Fedro preparou a armadilha.
Veja, a ordem alfabética alterada, a letra "L" na frente da letra
"A"... Fedro dissera que eu fosse na frente... Montaram uma
fake-news, mandando, imediato, o borrego para me insultar.
Estavam a serviço de quem? Dos criadores de cordeiros, é claro, do
capitalismo internacional.
11. Francisco:
O senhor lobo, o senhor é inocente?
O lobo:
Sim! Os clérigos de minha terra, sob o nosso Patriarca Kirill, me garantem que o
corretivo que estou a promover contra o cordeiro é de pura
Justiça. Francisco, o papa, garante que os cordeiros latem
contra mim. O senhor já viu um rebanho de cordeiros, no Chile, na
Austrália? Beber água no meio deles?! Deus me defenda! Nas vezes em
que intentei, me escorraçaram, zombaram de mim, latiram contra mim,
como se fossem uma matilha de lobos, desculpem-me, de cachorros:
"Sai daqui, lobo ladrão!" Fedro me chamou de ladrão, "latro", sem
prova alguma de que eu tivesse roubado nada, uma injustiça! Vou
processá-lo, assédio e dano moral, no STF! Não há
mais riachos para beber. Numa fazenda de cordeiros, de bebedouros
automáticos, circulares, centenas de cordeiros, milhares, bebendo ao
mesmo tempo! Eu, a me meter por entre eles?! Deus me defenda! Um pobre
lobo selvagem, já não tenho como beber em meio a essa pressão. Latem,
senhor, contra mim. Perguntem a Francisco, o papa! Estão a serviço de
um velho demente que sequer come carne de cordeiro (só carne branca,
de galinha, no processador; ele, sem dentes), um perverso,
contra mim. Mas fique claro: a continuar a crueldade contra mim, todos
avisados, vou reagir. Dinamitá-los! Anotem aí: VOU DINAMITÁ-LOS! (Numa fumaça ligeira, o lobo sumiu).
10. Francisco: — ?
SF:
Senhor, está mais que comprovado: o
cordeiro, culpado. Fedro, o lobo, o papa e o patriarca? Inocentes.
Link para o livro PSI, A PENÚLTIMA; o poema do mesmo nome, página 183
Fortaleza, CE, tarde de sol,
16.05.2022
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