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Victor Mikhailovich Vasnetsov, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lupus et agnus


 

Fragmento de um questionário:

Francisco, personagem de um poema longo, Psi, a Penúltima, sai de dentro do poema e vem conversar com o autor, um certo SF, que também é Francisco.

 

 

 

01. Francisco: Muito estranho o senhor tenha escrito um poema em defesa da raposa, um bicho reconhecimento mau, cruel, perverso; tanto pior, uma raposa doida, faminta, atacando as cacimbas-de-beber, morta de sede. Melhor o senhor tivesse gasto suas energias em defesa do cordeiro, não?

SF: Senhor, eu não posso defender o cordeiro, em hipótese alguma, por uma razão muito simples: o cordeiro é culpado! Antes mesmo que o senhor dê um salto bem acolá, dê-me licença para justificar.

02. Francisco: O quê? O senhor enlouqueceu? Fedro errou?! Culpado, meu caro, o culpado é o lobo! O lobo é culpado.

SF: Vejamos, senhor, calmamente, o que nos diz Fedro: Ad rivum eumdem lupus et agnus venerant, siti compulsi: A um mesmo riacho, vieram compelidos pela sede, o lobo e o cordeiro. Ora, senhor Francisco, Fedro anuncia, logo de entrada, que o lobo é o chefe!

03. Francisco: O chefe?!

SF: Sim! Todo mundo sabe que a ordem natural dos nomes é a alfabética, exceto se houver prioridades de títulos e patentes. Então, quando Fedro rompe a ordem natural dos nomes e coloca o "lupus" na frente do "agnus", patenteia ao lobo o grau de chefe. Em segundo, mesmo com a advertência de que o "lupus" é o chefe, o "agnus" (cordeiro) não se contém, avança para a água como se não fosse um subalterno... um desrespeito, uma imprudência. Uma provocação!

04. Francisco: Fedro esclareceu: siti compulsi, no plural, compelidos pela sede, "a pulso", os dois a morrer de sede! 

SF: Maior que fosse a sede, meu caro, cumpria ao cordeiro aguardar, prudentemente, bem escondido, alguns minutos, enquanto o lobo bebia. Fedro já avisara: o lobo é o chefe! No intuito de provocar, o cordeiro não se conteve.

05. Francisco: Concordo que teria sido prudente esperar, mas era o tal siti compulsi... Mas veja, prudentemente, o cordeiro postou-se abaixo, a jusante, bebendo o sobejo do lobo, sem lhe oferecer qualquer perigo... Superior stabat lupus, longeque inferior agnus.

SF: Não foi bem assim, senhor. O lobo estava acima... com medo do cordeiro?! Certamente! Nunca vira, ele, lobo, tamanha audácia. Além do mais, todo mundo sabe que esses vírus medonhos contaminam uma água em todas as direções, subindo, descendo. O lobo, ante tamanha provocação, com toda a calma do mundo, pergunta ao cordeiro: Cur, inquit, turbulentam fecisti mihi aquam bibenti? "Por que, perguntou, me toldas a água de beber?" Sabe o que o cordeiro aprontou?

06. Francisco: Diga, por favor. Começo a ficar assombr...

SF: O cordeiro, em vez de meter o pé na carreira, aproveitando a generosidade do lobo; pois bem, o tal cordeiro, na maior desfaçatez, resolveu discutir com o lobo. Imperdoável, a interpelá-lo. Veja: Qui possum, quæso, facere quod quereris, lupe? A te decurrit ad meos haustus liquor. "Como posso, por favor, fazer o que sugeres, ó lobo? O líquido flui de ti para mim". Um atrevimento, senhor! Acaso o cordeiro seria diplomado em topografia, em hidráulica? Exibiu o CREA, os referenciais de onde estudara?! Sabe, meu caro Francisco, o cordeiro só poderia estar mesmo a serviço de potências estrangeiras ou de algum outro lobo, inimigo, é claro. Nunca se viu tanta insolência. O lobo ainda lhe deu mais uma chance de fuga:

07. Francisco: —?

SF:  Ante hos sex menses male, ait, dixisti mihi. "Há seis meses falaste mal de mim". Uma segunda chance, de pura generosidade jamais vista, senhor! O lobo tinha certeza de que o cordeiro havia de botar sebo nas canelas e desaparecer no matagal. Sabe o senhor o que o cordeiro aprontou? Mais uma agressão, agora travestido de Oficial do Registro Civil ou especialista em processualística de prazos: Equidem, natus non eram. "Com certeza, eu não era nascido!" Quer dizer, senhor, o cordeiro, de alta perversidade, queria mesmo era desmoralizar o lobo; respeito nenhum! O lobo, de pura generosidade, ainda lhe deu mais uma chance de fuga, pura perda de tempo: Pater, hercle, tuus — ille inquit — male dixit mihi. "Por Hércules, o teu pai falou mal de mim".

08. Francisco: —?

SF: Foi demais, senhor. A provocação irresistível, a defesa da honra do lobo, a lesa-majestade, um grande rol de crimes do atrevido. O senhor acha pouco?!

09. Francisco: Veja, em vista do que o senhor narrou, vamos chamar o fabulista, Fedro, a se explicar. (E, num rápido estalar de dedos, a resposta de que Fedro mandara dizer que, no tempo dele, nunca houvera isto de defender bichos reconhecidamente perversos, lobos e raposas. Por isto mesmo, nada a esclarecer). Em vista disto, resolveram chamar as partes, o lobo e o cordeiro. O cordeiro, morto pelo lobo, obviamente não compareceu.

10. Francisco: Senhor Lobo, o que V. Exa. tem a dizer?

O lobo: Senhor Francisco, estou certo de que Fedro preparou a armadilha. Veja, a ordem alfabética alterada, a letra "L" na frente da letra "A"... Fedro dissera que eu fosse na frente... Montaram uma fake-news, mandando, imediato, o borrego para me insultar. Estavam a serviço de quem? Dos criadores de cordeiros, é claro, do capitalismo internacional. 

11. Francisco: O senhor lobo, o senhor é inocente?

O lobo: Sim! Os clérigos de minha terra, sob o nosso Patriarca Kirill, me garantem que o corretivo que estou a promover contra o cordeiro é de pura Justiça. Francisco, o papa, garante que os cordeiros latem contra mim. O senhor já viu um rebanho de cordeiros, no Chile, na Austrália? Beber água no meio deles?! Deus me defenda! Nas vezes em que intentei, me escorraçaram, zombaram de mim, latiram contra mim, como se fossem uma matilha de lobos, desculpem-me, de cachorros: "Sai daqui, lobo ladrão!" Fedro me chamou de ladrão, "latro", sem prova alguma de que eu tivesse roubado nada, uma injustiça! Vou processá-lo, assédio e dano moral, no STF! Não há mais riachos para beber. Numa fazenda de cordeiros, de bebedouros automáticos, circulares, centenas de cordeiros, milhares, bebendo ao mesmo tempo! Eu, a me meter por entre eles?! Deus me defenda! Um pobre lobo selvagem, já não tenho como beber em meio a essa pressão. Latem, senhor, contra mim. Perguntem a Francisco, o papa! Estão a serviço de um velho demente que sequer come carne de cordeiro (só carne branca, de galinha, no processador; ele, sem dentes), um  perverso, contra mim. Mas fique claro: a continuar a crueldade contra mim, todos avisados, vou reagir. Dinamitá-los! Anotem aí: VOU DINAMITÁ-LOS! (Numa fumaça ligeira, o lobo sumiu).   

10. Francisco: — ?

SF: Senhor, está mais que comprovado: o cordeiro, culpado. Fedro, o lobo, o papa e o patriarca? Inocentes.

 

Link para o livro PSI, A PENÚLTIMA; o poema do mesmo nome, página 183

 

Fortaleza, CE, tarde de sol, 16.05.2022

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

Ticiano, Flora

 

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Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The knight at the crossroads

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads