Poesia,
a celebração da vida
Reprodução
'Christ
in the Wilderness', de William Blake |
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"A atenção que
a boa literatura dá à vida é ao mesmo tempo amorosa
e imparcial. (...) Mas fica sempre claro (...) o quanto a experiência
humana vale a pena, mesmo quando - como na tragédia - encontra-se
o mal nesta experiência."
(Richard Hoggart, em Speaking
to each other)
I
"Não ter nascido é
bem que vence todo outro. (...) tudo é destruído pelo tempo,
a que nenhuma coisa resiste."
(Sófocles, em Édipo
em Colono)
Desde a tragédia grega
- um dos conjuntos de obras de primeiríssima grandeza na literatura
ocidental - estamos acostumados a representar e a perceber a experiência
humana como algo próximo do catastrófico: num extremo, o
homem nasce chorando, sem exceção e, no outro, sua morte
é, quase sempre, horrível, aterrorizante e inexplicável.
("O horror, o horror..." Joseph Conrad, em O Coração das
Trevas).
Durante toda sua vida, o homem
está sujeito a todo tipo de tragédias e desgraças
("Oh geração de mortais!...Como eu considero a vossa vida
igual ao nada", Sófocles, em Édipo Rei). Seus pais podem
não amá-lo suficientemente, ou não amá-lo de
maneira alguma ("Eles te fodem, papai e mamãe/ podem não
ter a intenção, mas o fazem", Philip Larkin, em This be the
verse). Seus amores, muitas vezes, não são correspondidos.
Os amigos, com o tempo, tendem a se afastar, quando não traem a
amizade. Os ideais têm a triste característica de quase nunca
serem realizáveis. Os filhos, depois de criados, saem de casa. Acontecimentos
exteriores (guerras, revoluções, catástrofes naturais)
podem destruir coletividades inteiras, ou alguns homens. No final, para
todos nós, o destino férreo: doença, decadência
e morte.
Por isso mesmo, alguns filósofos
chegaram à conclusão de que todas as épocas e gerações
são apocalípticas (no sentido de que passam sempre a esperar
o fim do mundo): com certeza, o mundo acaba, realmente, cedo ou tarde,
para todos nós ("Assim acaba o mundo/ Não com uma explosão,
mas com um suspiro", T. S. Eliot, em Os homens ocos).
No entanto, colocada na sua
forma mais extremada, essa visão catastrófica é parcial,
incompleta e não diz tudo sobre a experiência humana.
II
"Muitas coisas maravilhosas
existem; mas nada é mais maravilhoso do que o homem."
(Sófocles, em Antígona).
Se a vida humana algumas vezes
é dor, outras vezes pode ser delícia. Mesmo na mais aterrorizante
tragédia há afirmação. Depois de descobrir
que cumprira o oráculo, casara com a própria mãe,
matara o próprio pai, e quando fica sabendo que sua esposa (e mãe)
se enforcara, Édipo fura seus olhos. Mas continua vivo. Isto em
Édipo Rei. Na segunda peça da trilogia tebana, Édipo
em Colono, ao final, ele chega a uma apoteose, é arrebatado pelos
deuses e sua sepultura passa a ser uma benção para Atenas,
a cidade que o acolhera.
Qualquer nascimento, qualquer
momento inaugural, é mágico. Experienciar o mundo, para qualquer
criança, é pura maravilha. Descobrir e vivenciar o amor é
descobrir o sentido religioso da vida, é viver momentos de entrega.
A amizade pode ser a revelação e o aprendizado do outro,
do diferente. O trabalho, a luta por ideais, a realização
de alguns de nossos objetivos - mesmo que não exatamente como os
sonhamos - é pura transcendência. A velhice pode ser o momento
da sabedoria, da ascese. A vida humana passa, a todo instante, pela beleza
e pela epifania.
Da mesma maneira, essa visão
otimista em estado puro é, também, falsa, mentirosa, incompleta.
III
"(...) o poeta, especialmente,
não pode se interessar pelo ato de morrer. Deixe-o lidar com o mais
doente dos doentes, mas é ainda pelo ato de viver que o poeta se
interessa."
(Henry James, em The art of
the novel).
Como o viver é muito
misturado - dor e delícia, tragédia e comédia, imanência
e transcedência - é razoável supor que a melhor representação
da vida humana na arte é aquela que mostra os dois pólos
desta experiência: a dor, mas também a felicidade de existir.
Mostrar a afirmação na tragédia e a tragédia
na afirmação, eis a receita da grande arte ocidental de todos
os tempos.
O detalhe é a ênfase.
A impressão dominante em várias obras modernas, por exemplo,
parece ser seu extremo pessimismo. Leopold e Molly Bloom passam o livro
todo separados, física e espiritualmente (esta Penélope moderna
trai seu Ulisses sexualmente, enquanto ele está fora de casa), em
Ulisses (James Joyce); o Narrador, nos sete volumes de Em Busca do Tempo
Perdido (Marcel Proust), vai de desilusão em desilusão, e
finalmente descrê da possiblidade de escrever a obra com a qual tanto
sonha; os personagens de Kafka nunca conseguem entrar na lei, mesmo quando
a porta na frente da qual estão existe somente para eles; Godot,
apesar de esperado, nunca aparece, em Esperando Godot (Samuel Beckett).
Se olharmos estas mesmas obras
com atenção, veremos que a primeira impressão muda
rapidamente. Ao final de Ulisses, Molly Bloom, no seu monólogo interior,
dá vários "sins" a Leopold Bloom; o Narrador termina Em Busca
do Tempo Perdido afirmando que finalmente sente-se preparado para escrever
a obra que recuperará todo seu passado: o romance que acabamos de
ler é exatamente esta obra (para não falar das personagens
da mãe e da avó, belíssimas afirmações
da bondade, pura e simples); o significado da narrativa kafkiana faz a
afirmação da qual seu personagem é incapaz: somente
forçando as portas da lei, podemos entrar nela ("Você nunca
saberá o que é suficiente, a não ser que saiba o que
é mais do que suficiente", Blake, em O Casamento do Céu e
do Inferno).
Tanto em Kafka como em Beckett,
a descrição de comportamentos e de mecanismos humanos traz
implícitas várias perguntas: esta ordem de coisas é
inevitável? Aceitável? Imutável? O mecanismo descrito
é desumano, mas não deveríamos cometer um erro muito
comum: confundir a descrição do autor com sua posição
pessoal. A todo instante, podemos observar a distância entre o autor
e o que ele descreve. O conhecimento que sua narrativa produz, mesmo e
principalmente do horror e do sofrimento, é uma maneira de tornar
o leitor consciente, apto a tentar não repetir o que leu. É
realmente razoável ficar esperando, a vida inteira, por Godot, ou
pela permissão para entrar na lei?
As respostas a essas perguntas
parecem ser, acredito, uma afirmação da vida: não,
não podemos (ou devemos) esperar por Godot ou pela permissão.
Teremos, para todo sempre, de viver sem Godot, ou darmos as autorizações
necessárias a nós mesmos. Como afirmou Eric Bentley, em A
Experiência Viva do Teatro, "...o desespero não canta. Se
um homem desesperado começa a cantar, já está transcendendo
o seu desespero. Sua canção é a sua transcendência."
Podemos dizer, portanto, que mesmo com estes autores a afirmação
acontece, sim, mas somente em segundo plano.
Não é por outro
motivo que o grande ensaísta e crítico inglês F. R.
Leavis - estranhamente (sintomaticamente) pouco conhecido (e não
traduzido) no Brasil - afirma que, em última análise, as
grandes obras de arte são, sempre, afirmações da vida.
IV
"(...) ai do homem cujo coração
não aprendeu, quando jovem, a esperar, amar, e confiar na vida."
(Joseph Conrad, em Vitória)
Entre a morte de William Blake
(1827) e o nascimento de David Herbert Lawrence (1885) passaram-se quase
60 anos. Nascidos na Inglaterra, estes dois escritores possuem estranhas
semelhanças: ambos poetas, nenhum dos dois teve filhos, apesar de
casados por longo tempo com a mesma mulher. Blake foi um artista "operário"
(imprimia seus próprios livros), Lawrence, era filho de um operário
(seu pai trabalhava nas minas de carvão). A classe social à
qual pertenciam condicionou tanto os relacionamentos deles com outros artistas
e intelectuais - Blake, por exemplo, não conheceu pessoalmente nenhum
dos poetas ingleses do seu período, como Coleridge e Wordsworth,
mas travou relações com os pintores e desenhistas da sua
época, além de quase todos os pensadores radicais daquele
momento histórico, como a primeira das feministas, Mary Wollstonecraft
(mãe de Mary Shelley, autora de Frankenstein), e seu marido, William
Godwin - quanto a maneira como foram recebidos pelo "establishment" da
crítica literária (o grande poeta T. S.
Eliot chegou a escrever que
faltava escolaridade e refinamento a Lawrence e que os escritos deste corrompiam
as pessoas).
Os dois descreveram a feiúra
da paisagem industrial inglesa. Blake e Lawrence foram, ambos, artistas
plásticos. Em William Blake, podemos ler constantes referências
à textos, personagens e mitologias bíblicas. Em Lawrence,
dá-se o mesmo. Na realidade, os dois autores poetizaram/tematizaram,
constantemente, o contato da "criatura" com o "criador" e o universo (cosmos)
criado. As famílias dos dois escritores eram protestantes. Diferenças:
Lawrence escreveu, também, romances, contos, novelas, ensaios, peças
de teatro; já Blake, quase que somente poesia (e somente uma ficção
ocasional, An island in the moon, mais comentários aforísticos
sobre a obra de outros autores, escritos nos exemplares que possuía
destes livros). Blake parece ter composto música; Lawrence, não.
Mas a principal semelhança
entre William Blake e David Herbert Lawrence é que, na obra poética
dos dois, a afirmação da vida - ou, mais apropriadamente,
a celebração da vida - se dá em primeiro plano ou,
como diz o crítico Robin Wood, existe na obra deles um "compromisso
com a liberação (...) com a completude espontânea e
criativa do ser, com o corpo e a sexualidade como inseparáveis de
qualquer existência intelectual ou espiritual". Blake e Lawrence
afirmaram e celebraram (com muita ênfase e beleza) a vida, a sexualidade,
o corpo, o gozo, o prazer. Sem esquecer que, como bem percebeu Wood, em
nenhum momento eles desprezaram o intelecto ou o espírito; ao contrário,
reafirmaram, a cada passo, a necessidade da interação entre
essas duas forças, sem a qual uma vida plena seria impossível.
Exemplos de uma tal postura
são inúmeros. O mais emblemático deles está
no final de O Casamento do Céu e do Inferno: "Pois tudo que vive
é sagrado" (Blake). Mas existem muitos outros: "A nudez da mulher
é o trabalho de Deus" (Blake); "Tudo que tem beleza, tem um corpo
e é um corpo/ tudo que existe, existe na carne" (Lawrence); "Numa
esposa eu gostaria/ algo que numa prostituta é sempre encontrado/
os contornos do desejo satisfeito" (Blake); "Deixa quem quiser elogiar
o desejo/ mas só a satisfação cumpre" (Lawrence);
"Aqueles que reprimem o desejo fazem isto porque o deles é fraco
o bastante para ser reprimido" (Blake); "Não pode ser outra coisa
senão errado sacrificar/ sentimentos bons, saudáveis e naturais,
instintos, paixões ou desejos" (Lawrence). Momentos de pura reverência
pela vida, de um otimismo cósmico, abundam na poesia deles: "...meus
sentidos descobriram o infinito em todas as coisas" (Blake): "Somos muito
melhores do que o sistema nos permite ser" (Lawrence).
Para os dois poetas ingleses,
Deus, ou os deuses, estão em nós e nós neles, literalmente.
"Os deuses são somente nós mesmos" (Lawrence); "...os homens
esqueceram que Todas as deidades moram no coração humano"
(Blake); "Deus somente age e é nos seres existentes ou homens" (Blake);
"Agora, deixa-me ser eu mesmo, um ente, um dos deuses" (Lawrence). Deus,
ou os deuses, não estão encarnados somente nos homens, mas
nas coisas também: "As coisas graciosas são deus que veio
a ser..." (Lawrence); "Os Poetas antigos animaram todas os objetos sensíveis
com Deuses ou gênios, chamando-os pelos nomes" (Blake). Importante:
muitas vezes descritos corretamente como poetas místicos, a afirmação
proposta por eles é tudo, menos religiosa, pois a união direta
com a divindade, de que falam a todo instante, é claramente a união
com a divindade (com o demônio, também) "dentro" deles (e
de nós, leitores, também).
Poetas sofisticados, Lawrence
e Blake sabiam perfeitamente o papel que a destrutividade e a pulsão
de morte têm na vida humana. Daí que, longe de simplificar
a realidade e somente registrar e desejar o positivo (como faz, por exemplo,
um dos lixos culturais dominantes, os best sellers da literatura de auto-ajuda),
eles foram capazes, o tempo todo, de ver a negatividade e o lado sombrio
do ser humano: "Não pode existir boa-vontade.
A vontade é sempre Má.
Ela é nociva para os outros ou egoísta" (Blake; "O fim de
todas as coisas está dentro de nós" (Lawrence); "Fale sempre
o que pensa e o homem inferior te evitará" (Blake); "Gosto das pessoas
/a uma certa distância" (Lawrence). Eles sabiam perfeitamente, também,
que tudo na vida é misturado e que, muitas vezes, é desejável
que essa ambigüidade exista: "E porque você me ama/ você
pensa que não me odeia?" (Lawrence); "Sem os opostos não
há progresso. Atração e Repulsão, Razão
e Energia, Amor e Ódio, são necessários para a existência
Humana" (Blake). O diabo também é parte da condição
humana: é só prestar atenção no título
de um dos livros de Blake (O Casamento do Céu e do Inferno) e em
como Lawrence louva os "deuses estranhos": "Os estranhos africanos e os
estranhos escandinavos/ os belíssimos gregos, os repelentes fenícios,
os horrendos astecas.../ (...) /você os vê em vislumbres, nas
faces e formas das pessoas" (em Todos os tipos de deuses).
Os paralelos possíveis
entre D. H. Lawrence e William Bake são praticamente infinitos.
O fundamental é perceber que escreveram poesia altamente sofisticada,
e que, num mundo particularmente apocalíptico (agora sim, estamos
no final de mais um milênio, e temos a capacidade de destruir a vida
no nosso planeta - nisso reside a nossa diferença em relação
a todas as outras épocas - de diversas maneiras: guerra nuclear,
desequilíbrio ecológico, mutações genéticas
etc) é fundamental poder contar com a poesia e com o exemplo deles
que, mesmo nos seus momentos de irritação e descrença
nos falam, insistentemente, "...da vida e do crescimento, no meio de toda
esta massa de destruição e desintegração" (D.
H. Lawrence), sabendo que eles nunca deixaram de registrar que a vida humana
é dor e delícia, imanência e transcendência,
pois "sem a canção da morte, a canção da vida/
fica insípida e tola" (D. H. Lawrence, em Canção da
morte). Como escreveu magnificamente a escritora americana Joyce Carol
Oates, em New Heaven, New Earth, existem artistas que "parecem experimentar
uma força impessoal, um desenvolvimento, um florescimento das energias
da vida mesma. Tais artistas, tendo experimentado um espírito que
vai além do pessoal e que fala através deles, geralmente
afirmam todas as manifestações deste espírito e vêem
as divisões usuais do mundo - entre `bem' e `mal', `objetivo' e
`subjetivo' - como falaciosas". Exatamente. Ou, como disse maravilhosamente
David Herbert Lawrence, "eu não, eu não, mas o vento que
sopra através de mim", no poema "Canção do homem que
conseguiu".
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