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Atualizado em: 10.12.2000

 
 
Mário Alves Coutinho
Poesia, a celebração da vida 
Reprodução 
'Christ in the Wilderness', de William Blake 

 
 
"A atenção que a boa literatura dá à vida é ao mesmo tempo amorosa e imparcial. (...) Mas fica sempre claro (...) o quanto a experiência humana vale a pena, mesmo quando - como na tragédia - encontra-se o mal nesta experiência." 
(Richard Hoggart, em Speaking to each other) 
"Não ter nascido é bem que vence todo outro. (...) tudo é destruído pelo tempo, a que nenhuma coisa resiste." 
(Sófocles, em Édipo em Colono) 
Desde a tragédia grega - um dos conjuntos de obras de primeiríssima grandeza na literatura ocidental - estamos acostumados a representar e a perceber a experiência humana como algo próximo do catastrófico: num extremo, o homem nasce chorando, sem exceção e, no outro, sua morte é, quase sempre, horrível, aterrorizante e inexplicável. ("O horror, o horror..." Joseph Conrad, em O Coração das Trevas). 
Durante toda sua vida, o homem está sujeito a todo tipo de tragédias e desgraças ("Oh geração de mortais!...Como eu considero a vossa vida igual ao nada", Sófocles, em Édipo Rei). Seus pais podem não amá-lo suficientemente, ou não amá-lo de maneira alguma ("Eles te fodem, papai e mamãe/ podem não ter a intenção, mas o fazem", Philip Larkin, em This be the verse). Seus amores, muitas vezes, não são correspondidos. Os amigos, com o tempo, tendem a se afastar, quando não traem a amizade. Os ideais têm a triste característica de quase nunca serem realizáveis. Os filhos, depois de criados, saem de casa. Acontecimentos exteriores (guerras, revoluções, catástrofes naturais) podem destruir coletividades inteiras, ou alguns homens. No final, para todos nós, o destino férreo: doença, decadência e morte. 
Por isso mesmo, alguns filósofos chegaram à conclusão de que todas as épocas e gerações são apocalípticas (no sentido de que passam sempre a esperar o fim do mundo): com certeza, o mundo acaba, realmente, cedo ou tarde, para todos nós ("Assim acaba o mundo/ Não com uma explosão, mas com um suspiro", T. S. Eliot, em Os homens ocos). 
No entanto, colocada na sua forma mais extremada, essa visão catastrófica é parcial, incompleta e não diz tudo sobre a experiência humana. 
II 
"Muitas coisas maravilhosas existem; mas nada é mais maravilhoso do que o homem." 
(Sófocles, em Antígona). 
Se a vida humana algumas vezes é dor, outras vezes pode ser delícia. Mesmo na mais aterrorizante tragédia há afirmação. Depois de descobrir que cumprira o oráculo, casara com a própria mãe, matara o próprio pai, e quando fica sabendo que sua esposa (e mãe) se enforcara, Édipo fura seus olhos. Mas continua vivo. Isto em Édipo Rei. Na segunda peça da trilogia tebana, Édipo em Colono, ao final, ele chega a uma apoteose, é arrebatado pelos deuses e sua sepultura passa a ser uma benção para Atenas, a cidade que o acolhera. 
Qualquer nascimento, qualquer momento inaugural, é mágico. Experienciar o mundo, para qualquer criança, é pura maravilha. Descobrir e vivenciar o amor é descobrir o sentido religioso da vida, é viver momentos de entrega. A amizade pode ser a revelação e o aprendizado do outro, do diferente. O trabalho, a luta por ideais, a realização de alguns de nossos objetivos - mesmo que não exatamente como os sonhamos - é pura transcendência. A velhice pode ser o momento da sabedoria, da ascese. A vida humana passa, a todo instante, pela beleza e pela epifania. 
Da mesma maneira, essa visão otimista em estado puro é, também, falsa, mentirosa, incompleta. 
III 
"(...) o poeta, especialmente, não pode se interessar pelo ato de morrer. Deixe-o lidar com o mais doente dos doentes, mas é ainda pelo ato de viver que o poeta se interessa." 
(Henry James, em The art of the novel). 
Como o viver é muito misturado - dor e delícia, tragédia e comédia, imanência e transcedência - é razoável supor que a melhor representação da vida humana na arte é aquela que mostra os dois pólos desta experiência: a dor, mas também a felicidade de existir. Mostrar a afirmação na tragédia e a tragédia na afirmação, eis a receita da grande arte ocidental de todos os tempos. 
O detalhe é a ênfase. A impressão dominante em várias obras modernas, por exemplo, parece ser seu extremo pessimismo. Leopold e Molly Bloom passam o livro todo separados, física e espiritualmente (esta Penélope moderna trai seu Ulisses sexualmente, enquanto ele está fora de casa), em Ulisses (James Joyce); o Narrador, nos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido (Marcel Proust), vai de desilusão em desilusão, e finalmente descrê da possiblidade de escrever a obra com a qual tanto sonha; os personagens de Kafka nunca conseguem entrar na lei, mesmo quando a porta na frente da qual estão existe somente para eles; Godot, apesar de esperado, nunca aparece, em Esperando Godot (Samuel Beckett). 
Se olharmos estas mesmas obras com atenção, veremos que a primeira impressão muda rapidamente. Ao final de Ulisses, Molly Bloom, no seu monólogo interior, dá vários "sins" a Leopold Bloom; o Narrador termina Em Busca do Tempo Perdido afirmando que finalmente sente-se preparado para escrever a obra que recuperará todo seu passado: o romance que acabamos de ler é exatamente esta obra (para não falar das personagens da mãe e da avó, belíssimas afirmações da bondade, pura e simples); o significado da narrativa kafkiana faz a afirmação da qual seu personagem é incapaz: somente forçando as portas da lei, podemos entrar nela ("Você nunca saberá o que é suficiente, a não ser que saiba o que é mais do que suficiente", Blake, em O Casamento do Céu e do Inferno). 
Tanto em Kafka como em Beckett, a descrição de comportamentos e de mecanismos humanos traz implícitas várias perguntas: esta ordem de coisas é inevitável? Aceitável? Imutável? O mecanismo descrito é desumano, mas não deveríamos cometer um erro muito comum: confundir a descrição do autor com sua posição pessoal. A todo instante, podemos observar a distância entre o autor e o que ele descreve. O conhecimento que sua narrativa produz, mesmo e principalmente do horror e do sofrimento, é uma maneira de tornar o leitor consciente, apto a tentar não repetir o que leu. É realmente razoável ficar esperando, a vida inteira, por Godot, ou pela permissão para entrar na lei? 
As respostas a essas perguntas parecem ser, acredito, uma afirmação da vida: não, não podemos (ou devemos) esperar por Godot ou pela permissão. Teremos, para todo sempre, de viver sem Godot, ou darmos as autorizações necessárias a nós mesmos. Como afirmou Eric Bentley, em A Experiência Viva do Teatro, "...o desespero não canta. Se um homem desesperado começa a cantar, já está transcendendo o seu desespero. Sua canção é a sua transcendência." Podemos dizer, portanto, que mesmo com estes autores a afirmação acontece, sim, mas somente em segundo plano. 
Não é por outro motivo que o grande ensaísta e crítico inglês F. R. Leavis - estranhamente (sintomaticamente) pouco conhecido (e não traduzido) no Brasil - afirma que, em última análise, as grandes obras de arte são, sempre, afirmações da vida. 
IV 
"(...) ai do homem cujo coração não aprendeu, quando jovem, a esperar, amar, e confiar na vida." 
(Joseph Conrad, em Vitória) 
Entre a morte de William Blake (1827) e o nascimento de David Herbert Lawrence (1885) passaram-se quase 60 anos. Nascidos na Inglaterra, estes dois escritores possuem estranhas semelhanças: ambos poetas, nenhum dos dois teve filhos, apesar de casados por longo tempo com a mesma mulher. Blake foi um artista "operário" (imprimia seus próprios livros), Lawrence, era filho de um operário (seu pai trabalhava nas minas de carvão). A classe social à qual pertenciam condicionou tanto os relacionamentos deles com outros artistas e intelectuais - Blake, por exemplo, não conheceu pessoalmente nenhum dos poetas ingleses do seu período, como Coleridge e Wordsworth, mas travou relações com os pintores e desenhistas da sua época, além de quase todos os pensadores radicais daquele momento histórico, como a primeira das feministas, Mary Wollstonecraft (mãe de Mary Shelley, autora de Frankenstein), e seu marido, William Godwin - quanto a maneira como foram recebidos pelo "establishment" da crítica literária (o grande poeta T. S. 
Eliot chegou a escrever que faltava escolaridade e refinamento a Lawrence e que os escritos deste corrompiam as pessoas). 
Os dois descreveram a feiúra da paisagem industrial inglesa. Blake e Lawrence foram, ambos, artistas plásticos. Em William Blake, podemos ler constantes referências à textos, personagens e mitologias bíblicas. Em Lawrence, dá-se o mesmo. Na realidade, os dois autores poetizaram/tematizaram, constantemente, o contato da "criatura" com o "criador" e o universo (cosmos) criado. As famílias dos dois escritores eram protestantes. Diferenças: Lawrence escreveu, também, romances, contos, novelas, ensaios, peças de teatro; já Blake, quase que somente poesia (e somente uma ficção ocasional, An island in the moon, mais comentários aforísticos sobre a obra de outros autores, escritos nos exemplares que possuía destes livros). Blake parece ter composto música; Lawrence, não. 
Mas a principal semelhança entre William Blake e David Herbert Lawrence é que, na obra poética dos dois, a afirmação da vida - ou, mais apropriadamente, a celebração da vida - se dá em primeiro plano ou, como diz o crítico Robin Wood, existe na obra deles um "compromisso com a liberação (...) com a completude espontânea e criativa do ser, com o corpo e a sexualidade como inseparáveis de qualquer existência intelectual ou espiritual". Blake e Lawrence afirmaram e celebraram (com muita ênfase e beleza) a vida, a sexualidade, o corpo, o gozo, o prazer. Sem esquecer que, como bem percebeu Wood, em nenhum momento eles desprezaram o intelecto ou o espírito; ao contrário, reafirmaram, a cada passo, a necessidade da interação entre essas duas forças, sem a qual uma vida plena seria impossível. 
Exemplos de uma tal postura são inúmeros. O mais emblemático deles está no final de O Casamento do Céu e do Inferno: "Pois tudo que vive é sagrado" (Blake). Mas existem muitos outros: "A nudez da mulher é o trabalho de Deus" (Blake); "Tudo que tem beleza, tem um corpo e é um corpo/ tudo que existe, existe na carne" (Lawrence); "Numa esposa eu gostaria/ algo que numa prostituta é sempre encontrado/ os contornos do desejo satisfeito" (Blake); "Deixa quem quiser elogiar o desejo/ mas só a satisfação cumpre" (Lawrence); "Aqueles que reprimem o desejo fazem isto porque o deles é fraco o bastante para ser reprimido" (Blake); "Não pode ser outra coisa senão errado sacrificar/ sentimentos bons, saudáveis e naturais, instintos, paixões ou desejos" (Lawrence). Momentos de pura reverência pela vida, de um otimismo cósmico, abundam na poesia deles: "...meus sentidos descobriram o infinito em todas as coisas" (Blake): "Somos muito melhores do que o sistema nos permite ser" (Lawrence). 
Para os dois poetas ingleses, Deus, ou os deuses, estão em nós e nós neles, literalmente. "Os deuses são somente nós mesmos" (Lawrence); "...os homens esqueceram que Todas as deidades moram no coração humano" (Blake); "Deus somente age e é nos seres existentes ou homens" (Blake); "Agora, deixa-me ser eu mesmo, um ente, um dos deuses" (Lawrence). Deus, ou os deuses, não estão encarnados somente nos homens, mas nas coisas também: "As coisas graciosas são deus que veio a ser..." (Lawrence); "Os Poetas antigos animaram todas os objetos sensíveis com Deuses ou gênios, chamando-os pelos nomes" (Blake). Importante: muitas vezes descritos corretamente como poetas místicos, a afirmação proposta por eles é tudo, menos religiosa, pois a união direta com a divindade, de que falam a todo instante, é claramente a união com a divindade (com o demônio, também) "dentro" deles (e de nós, leitores, também). 
Poetas sofisticados, Lawrence e Blake sabiam perfeitamente o papel que a destrutividade e a pulsão de morte têm na vida humana. Daí que, longe de simplificar a realidade e somente registrar e desejar o positivo (como faz, por exemplo, um dos lixos culturais dominantes, os best sellers da literatura de auto-ajuda), eles foram capazes, o tempo todo, de ver a negatividade e o lado sombrio do ser humano: "Não pode existir boa-vontade. 
A vontade é sempre Má. Ela é nociva para os outros ou egoísta" (Blake; "O fim de todas as coisas está dentro de nós" (Lawrence); "Fale sempre o que pensa e o homem inferior te evitará" (Blake); "Gosto das pessoas /a uma certa distância" (Lawrence). Eles sabiam perfeitamente, também, que tudo na vida é misturado e que, muitas vezes, é desejável que essa ambigüidade exista: "E porque você me ama/ você pensa que não me odeia?" (Lawrence); "Sem os opostos não há progresso. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio, são necessários para a existência Humana" (Blake). O diabo também é parte da condição humana: é só prestar atenção no título de um dos livros de Blake (O Casamento do Céu e do Inferno) e em como Lawrence louva os "deuses estranhos": "Os estranhos africanos e os estranhos escandinavos/ os belíssimos gregos, os repelentes fenícios, os horrendos astecas.../ (...) /você os vê em vislumbres, nas faces e formas das pessoas" (em Todos os tipos de deuses). 
Os paralelos possíveis entre D. H. Lawrence e William Bake são praticamente infinitos. O fundamental é perceber que escreveram poesia altamente sofisticada, e que, num mundo particularmente apocalíptico (agora sim, estamos no final de mais um milênio, e temos a capacidade de destruir a vida no nosso planeta - nisso reside a nossa diferença em relação a todas as outras épocas - de diversas maneiras: guerra nuclear, desequilíbrio ecológico, mutações genéticas etc) é fundamental poder contar com a poesia e com o exemplo deles que, mesmo nos seus momentos de irritação e descrença nos falam, insistentemente, "...da vida e do crescimento, no meio de toda esta massa de destruição e desintegração" (D. H. Lawrence), sabendo que eles nunca deixaram de registrar que a vida humana é dor e delícia, imanência e transcendência, pois "sem a canção da morte, a canção da vida/ fica insípida e tola" (D. H. Lawrence, em Canção da morte). Como escreveu magnificamente a escritora americana Joyce Carol Oates, em New Heaven, New Earth, existem artistas que "parecem experimentar uma força impessoal, um desenvolvimento, um florescimento das energias da vida mesma. Tais artistas, tendo experimentado um espírito que vai além do pessoal e que fala através deles, geralmente afirmam todas as manifestações deste espírito e vêem as divisões usuais do mundo - entre `bem' e `mal', `objetivo' e `subjetivo' - como falaciosas". Exatamente. Ou, como disse maravilhosamente David Herbert Lawrence, "eu não, eu não, mas o vento que sopra através de mim", no poema "Canção do homem que conseguiu". 

Mário Alves Coutinho é ensaísta, psicólogo, roteirista cinematográfico. Co-escreveu os roteiros de Idolatrada e João Rosa. O texto acima é o posfácio (inédito) do livro Tudo que vive é Sagrado, antologia da poesia de William Blake e D. H. Lawrence, Editora Crisálida, a ser lançado no início de janeiro, tradução do próprio autor deste ensaio 

 
Sábado, 9 de dezembro de 2000