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Marcelo Pen


 

Coletânea encanta com histórias além da imaginação


Folha de São Paulo


 

É um catatau, um maravilhoso catatau este organizado pelo escritor italiano Italo Calvino --perfeito, nas noites de inverno que se aproximam, para ser levado à cama, com o propósito de convocar nossos sonhos mediante as visões oníricas e de pesadelo imaginadas por 26 autores de diversas nacionalidades.

O volume inclui contos de escritores experientes na área do fantástico: E. T. A. Hoffmann, Gérard de Nerval, Edgard Allan Poe, Guy de Maupassant, Henry James, Robert Louis Stevenson e H. G. Wells.

Mas há os poucos afeitos às paragens sobrenaturais, como Honoré de Balzac e Ivan Turguêniev; e figuras menos conhecidas, como Philarète Chasles, escritor bibliotecário, precursor de Borges nesse duplo mister; e Jean Lorrain, homossexual e viciado em éter. Ou ainda autores famosos nos oitocentos, mas de influência minguante, como o irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, perito em histórias de fantasmas.

Calvino crava as origens do gênero fantástico no gótico inglês e no romantismo alemão. Baseia-se no corte de Tzvetan Todorov, entre fantástico e maravilhoso: no primeiro, haveria um grau de espanto diante do fato extraordinário, enquanto, no segundo (como em "As Mil e Uma Noites"), o incomum seria aceito com maior naturalidade. Descontado o esquematismo desnecessário para justificar a seleção (já que muitas histórias apresentadas poderiam ser descritas como "maravilhosas", enquanto outras, de períodos anteriores não contemplados, prenunciam o "fantástico"), a reunião é excelente.

O grotesco, por exemplo, manifesta-se na "História do Demoníaco Pacheco", de Jan Potocki, na qual o herói se deita com a madrasta e a cunhada, e acorda ao lado de cadáveres de enforcados. A indistinção entre sonho e realidade está em "O Sonho", de Turguêniev, com sua impressionante cena de estupro velado, e em "Os Buracos da Máscara", de Lorrain, sobre um baile --literalmente-- alucinante.

O tema do duplo comparece em "A Sombra", de Hans Christian Andersen, sobre uma sombra que se aparta de seu "dono", passando a levar vida independente. E os russos Nikolai Gógol, com "O Nariz", e Nikolai Leskov, com "O Espanta-Diabo", comprovam que o fantástico também pode ser engraçado.

Calvino dividiu o volume em dois. Na primeira parte, estão os contos cujo aspecto visualmente espetacular sobressai; na seguinte, o terror reveste-se de uma tonalidade mais íntima ou abstrata. A primeira vertente exerceu maior influência no início do século 19, enquanto a outra destacou-se no final dos oitocentos, "atingindo o ápice na intangibilidade imaterial de Henry James".

A literatura fantástica fundamenta-se "no problema da realidade daquilo que se vê": o corriqueiro que oculta abismos aterrorizantes e visões macabras geradas pelo estado de espírito. Não por acaso, Calvino encerra a coletânea com "Em Terra de Cego", de Wells, no qual um explorador passa por maus bocados ao tentar provar a superioridade do sentido da visão numa vila composta inteiramente de cegos.

22/05/2004 - 05h49 Jornal : Folha Online - Ilustrada