Augusto Massi
Imagens da solidão e do desejo
A psicanalista Maria Rita Kehl publica o seu terceiro livro de poesia.
Formulada deste modo a frase traduz uma realidade sob a qual paira uma
certa desconfiança. A primazia da identidade profissional encobre
a suspeita sobre o espaço que a poesia ocuparia na existência
de Maria Rita Kehl. Alguns juram que a psicanalista só quer a pose
de poeta. Mas, devolvendo a provocação, quem aceitaria com
bons olhos a hipótese inversa: a poeta Maria Rita Kehl publica o
seu terceiro livro de psicanálise?
Este tipo de cobrança tem se tornado cada vez mais presente em nossa
vida cultural. Numa época em que se valoriza o especialista, como
julgar a aventura intelectual dos que buscam criar relações
ou transitar entre diferentes discursos?
Por trás dessa vigilância, há um forte protecionismo
do mercado intelectual, que anda amedrontado com o fantasma do desemprego,
que corresponderia a não estar na mídia. A ordem é
não invadir a praia de ninguém. Este patrulhamento começou
quando músicos consagrados como, por exemplo, Caetano
Veloso resolveu rodar ``Cinema Falado'' e Chico Buarque escrever ``Estorvo''.
Aliás, diga-se de passagem, o silêncio crítico em torno
de ``Benjamin'', trabalho de mestre, é pura retaliação
por navegar em águas alheias.
Na área da poesia, cujo mercado é bem mais restrito, a briga
por legitimação e espaço é mais acirrada. Seria
saudável revisitar a experiência modernista -hoje, infelizmente,
sob o fogo cruzado do revisionismo que tende a ver "imagens negociadas"
por todos os lados-, Bandeira publicou uma excelente ``Antologia de Poetas
Bissextos Contemporâneos'' (1946); Drummond, em ``Passeios na Ilha''
(1952), chamava a atenção para as vozes de Emílio
Moura, Joaquim Cardozo e Henriqueta Lisboa; Murilo Mendes foi responsável
pela publicação dos primeiros poemas de Adalgisa Nery.
Zelosos de seus espaços, os poetas atuais valem-se de argumentos
reducionistas como "o que ele faz não é poesia". É
inacreditável que a qualidade do trabalho de Arnaldo Antunes seja
questionada no sentido de ele ter ou não uma inserção
poética profissional nos moldes tradicionais. Penso que um dos fatores
de sua radicalidade poética é justamente colocar em xeque
os limites do já estabelecido como poesia.
Dito isso, passemos ao comentário de ``Processos Primários'',
de Maria Rita Kehl, que, se evidentemente não possui a força
das obras acima citadas, dentro do percurso da autora representa um avanço
considerável. Além dos 41 poemas que compõem ``Processos
Primários'', a autora resgatou seis textos de "Imprevisão
do Tempo" (1979) e outros 13 de "O Amor É uma Droga Pesada" (1983).
Este novo livro tem o caráter de uma antologia pessoal, releitura
crítica da própria obra. Ao invés de mera coletânea,
registrando momentos e dicções diferentes, há uma
tentativa de fixar os elementos permanentes, matéria lírica
que independe e sobrevive às marcas geracionais. Até mesmo
o que parece desigual o é sempre à maneira de Maria Rita
Kehl.
Partindo destas observações, "Processos Primários"
deve ser lido como um livro único, modulações de um
mesmo movimento. O próprio título, termo extraído
da teoria freudiana, aponta neste sentido. Se por um lado fornece uma pista,
por outro, prejudica uma avaliação mais livre do leitor.
Ainda traz o rótulo de fábrica: psicanálise. Mas essa
primeira impressão logo fica para trás e imediatamente penetramos
no que talvez haja de mais bonito no livro, o deslocamento pelo espaço
urbano de São Paulo. Vamos construindo um roteiro que começa
no poema "Pinheiros": "Teria nove anos/ sandálias havaianas/ e o
bonde subindo a rua/ Theodoro Sampaio", passa pela "Rua Lisboa", "Rua Fernão
Dias" e termina na "Pompéia". Este último é uma bela
evocação gravitando em baixo relevo na Gradiva: "Pernas de
meninas/ rua de pedra se precipitando/ do alto sobre o mundo incendiado".
Paralelamente, temos uma condensação do tempo dilacerado
pela experiência amorosa sintetizada na epígrafe: "O desejo
é a mais cruel das estações". Os poemas configuram-se
a partir de um movimento cíclico que revisita as estações
infernais da paixão. A persona passional dispensa a primavera e
o inverno. Dois textos com o mesmo título, "Verão", não
têm nada de solar, são poemas desabitados, esvaziados, pós-amor:
uma mulher só não faz verão?
A paixão dispensa as promessas de felicidade e tudo tende à
reflexão terminal e melancólica de "Outono": "Me veio uma
idéia assim/ de não querer mais você/ não ter
mais homem nenhum/ ser minha própria/ morada". A temporada se fecha
com o poema "Estação das Águas": "Habitar um corpo/
que seja um corpo em silêncio em tênue vibração/
um corpo feminino exterior compacto um corpo/ vão/ natural como
rios como cactos como terra/ como terremotos".
Um olhar desarmado rastreia em "Processos Primários" uma poética
expressionista. Às vezes, do ponto de vista da sensibilidade, estamos
próximos daquele expressionismo clínico e dramático
do poeta alemão Gottfried Benn, caso de poemas como "Franco da Rocha".
Mas na maioria das vezes a atmosfera é de exacerbação
da subjetividade, tentativa de cortar os pulsos da consciência, compor
uma "Arte da Fuga".
Existem muitos vínculos geracionais aproximando Maria Rita Kehl
de Ana Cristina César. Para não falar do enjambement que
foi Reinaldo Moraes. A comparação, por vezes, parece incontornável.
Mas acho um equívoco. Arriscaria dizer que Maria Rita Kehl nunca
esteve em sintonia com o clima contracultural da poesia marginal. Poeticamente
jamais utilizou a ironia sofisticada e o alto repertório intertextual
de Ana. A poesia desta era à clé, a de Maria Rita Kehl é
feita de panorâmicas da solidão e closes primitivos do desejo.
Sem querer polemizar com o prefácio, Armando Freitas Filho não
conseguiu apreender a beleza que há na obra, mescla de energia erótica
e militância trágica. Maria Rita Kehl oscila entre o arrebatamento
libertário e a insanidade da insônia, entre pular no fosso
do abandono ou aceitar a rotina como último recurso ("O Método
Faz Milagres"). A musa expressionista toma lexotan.
Maria Rita Kehl ainda não conseguiu encontrar uma forma capaz de
integrar os elementos que informam sua matéria poética. Mas,
sem sombra de dúvida, "Processos Primários" é o seu
trabalho mais interessante. Em outras palavras, a poeta Maria Rita Kehl
publica seu terceiro livro de poemas.
Augusto Massi é professor de literatura brasileira na USP e poeta,
autor de ``Negativo''(Companhia das Letras).
A OBRA
Processos Primários - Maria Rita Kehl. Estação Liberdade
(av. Doutor Arnaldo, 1.155, São Paulo, CEP 01255-000, tel. 011/872-9515).
86 págs. R$ 14,00.
(in Caderno Mais! - Folha de São Paulo) |