De um povo extinto
frente
ao mar:
árvore-turquesa
esculpida de azul,
De tantos milênios:
estátua de tempo
que aos sete mares exporta
sua derme de mar e pedra;
Hoje, dragão morto ao
fogo que espraiamos.
Talvez feita de si
mesma,
ou de si nascente
germina,
Ao vento de seu
corpo,
gota de beleza,
o seixo vulcânico
da vida que sai de sua boca,
Como seu oceano,
Fruto de mar e terra:
Corpo de seus
séculos.
Inerme entre
eternidade e morte,
objeto do que reavemos
e habitamos
com nosso sangue e
carne,
secreta o que herdamos
da ave de sal do seu oceano, no
seu abraço lavado,
nos seus braços
carcomidos
Pelo quartzo.
No que nos
acotovelamos
minúsculos grãos
invadidos de areia
ao sabor dos obstáculos,
O tempo âncora solta
ao mar.
Mar — vagaroso guia
do que somos
Frente a um grande
espetáculo!
De ventre de água
mumificada
pelas nuvens
que as envolvem,
Da argamassa de ventos
as vozes que no tempo
navegam,
e os albatrozes
A velar pelos que
dormem nessas águas.
Das velas do cais
por onde
o tempo
se esquina,
O passageiro
dia
Da morte não se vacina:
Constrói
combogós para além de nós.
Tange rios-gados
dessa cidade com seu cajado:
Pasta a vida
em currais de
lama.
Cova do mar, a cidade
de
que
somos
Perdemo-la aos poucos
numa derrama
de esgotos,
para os medonhos seres
de concreto,
com seus fuzis
de asfalto e de cimento;
Os mangues,
irrequietos,
dos porões da terra
curtida,
lamificada,
Desgarram-se da
cidade
amontoado
urbano inorgânico.
Ela, porém,
infixa, numa carapaça
de cal e de argila,
subviverá em minhas
narinas,
intemporal,
Até final momento
De onde nos derramaremos
húmus,
caudalosos,
abaixo dos inconcretos
Fusos urbanos,
Em busca de rios
e
mangues subterrâneos.
No rosto morto de
cansaço,
de
aço e de fuzil,
De cansaço que se fez
pedra, a vida,
louca-metralha,
que importa
se dissolvida
ou petrificada
Por entre a
terra
que
abomina
a mão
De quem busca o pão
E apanha-se em
cinzas?
Há vestígios
de paisagem,
indícios frágeis
que o grosso
estômago da cidade
vai mastigando
com seus
dentes-luzes de mercúrio e pó.
— Adianta dizer-te
como?
Ou dizer-te isso espanta?
Conforme vida manda,
mesmo mínima,
peregrina,
Há qualquer coisa nesse
chão que me fascina,
Que me alucina a
verdade
E me tem posto
por
entre
vastas vias
De pó, pedra e
sal.
Há muito
a cidade
se alimenta
Do branco da
cal do atlântico
Que a perpassa;
Que devassa
Suas
alamedas frias,
Que a veste para
o despertar
Atônito do dia.
Sei que sofre
No esforço inútil
De solidão e
morte.
Vim aqui pedir por
nós...
Vim aqui traduzir a
morte
Que o asfalto
trouxe
Ao seu mau-hálito
de mangue.
Ao seu aleijar-se
urbano.
Vim trazer mensagem
urgente
dos habitantes do vento,
dos habitantes da lama,
dos inabitáveis nichos
em que se derrama a urbe.
Vim falar, em sua
língua,
da urina de seu mundo
minúsculo,
depositório da lama
em cujo idioma me traduzo;
Pois há muito ouço
seu discurso,
sua palavra viscosa,
grossa e fluida,
como a de um mendigo,
a de um menino
que com a fome come
seu idioma goma amargo,
dissolvido, gago;
E quando
seus olhos,
tentáculos a segurar sua
fome,
não sustentam a sílaba,
a palavra da língua
desaba como lama
seca de caatinga.
A cidade
descola
como
sola
a
largar-se do salto,
como
lodo de cacimba se solta,
Como bola a
descosturar-se,
Como bala gente
imola,
pêlo
que se raspa,
carne que se corta;
Como a vida que se
metralha
e escapa
pelas
narinas
impregnadas de cola.
Assim é a cidade
que
amamos
e
afunda a todos em desenganos.
Assim é sua
cartilagem,
seu corpo
viário da vassalagem;
Parte que se basta,
como
garça desvairada que flutua,
essa
cidade pálida sobre casas túrgidas!
À medida
que se posta carne, e a
fome traz
os homens mastigados, a
faca
Dos hemorrágicos
mascates a detona:
deles tudo sangra
numa derrama de
acidentados:
Miçangas, pratarias,
violas, poesia...
que já não se sabe
se as ruas os cabem
ou neles se prolongam,
ou se lhes são a
própria sombra
nelas se adentrando
Num curso lento e
profundo,
Penetrando-as até
raiz
De onde as cidades
nascem e se maturam.
Porém essa de várias
cidades se completa:
pode ser a Meca,
a Mauritsstad,
Ou qualquer outra,
ou todas,
Ou se já só
feita de si
mesma
ou nem isso seja.
Importa, sim, que seu
povo
a veja,
a
deseje,
a possua
em qualquer
sombra de si fincada.
Pois uma cidade,
assim edificada,
começa na gente
a crescer
Até em nós
ser povoada.