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Mendes Cadaxa

Poemas
 
 

Wilson Martins

 

in Prosa & Verso,
O Globo, 6.11.1999

Os dialetos da poesia


Dois poetas, vivendo e escrevendo fora do circuito convencional da vida literária, sugerem algumas reflexões sobre o idioma da poesia e seus dialetos. Situam-se, ambos, na mesma escala de valores e em planos equivalentes de maturidade emocional, longe das composições de adolescentes que, em geral, caracterizam a produção corrente.

Há, naturalmente, a língua franca da temática tradicional e dos princípios técnicos admitidos pelos diversos códigos retóricos. É nesse idioma que Horácio Costa escreve uma parte dos poemas de Quadragésimo (Cotia, SP: Ateliê, 1999), em muitos dos quais é sensível a influência de Carlos Drummond de Andrade. Assim, o verso drummondiano: "Vinte anos é um grande tempo" repercute no poema "Aniversários": "duas décadas não são nada", sendo, entretanto, "a média de vida do homem primitivo" e "a média de glória de um artista maior."

Como Drummond e claramente inspirado por ele, o autor de "Quadragésimo também se entrega à "tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo", traduzida no extraordinário poema sobre a "máquina do mundo": "E como eu palmilhasse vagamente/uma estrada de Minas, pedregosa", reverberando nos versos de Horácio Costa:

E como eu caminhasse solitário
por uma mesma estrada perigosa
cujas margens sumissem num crepúsculo []

Nessa língua franca manifesta-se o respeito pelas vivências literárias que formam o tecido da nossa cultura, seja o poema "Marat" ou, ainda, "Minos agoniza" e "Em Haia na Casa de Maurício de Nassau". A suprema viagem espiritual e filosófica "Morrer às margens do Sena" está no centro da obra, se não no centro de todo homem culto:

Corpos de soldados em decomposição
passam como folhas autonais
debaixo das pontes de Paris
rentes às margens que César viu
e os Anjous retificaram []

É a língua franca de A. B. Mendes Cadaxa em alguns poemas das Peças ligeiras outras nem tanto (Nova Friburgo: Ars Fluminensis, 1999), como, por exemplo, "Ecos de 'Tristan da Cunha'" ou "Compasso das horas". O volume é desigual e compósito, sugerindo, à leitura, o aproveitamento de páginas esparsas, em prosa e verso, além dos "exercícios" de poeta que se diverte (e esforça) na composição da poemas similemedievais, para os quais há, em nossa literatura, o precedente ilustre de Gonçalves Dias.

Mas, aqui entramos nos domínios dos dialetos poéticos, em que se verifica a mesma distância, eu diria qualitativa, emocional e estilística que os separa, na língua comum, da linguagem universal (no interior de cada sistema), e, por outro, dos dialetos regionais ou localistas da realidade. No caso de Mendes Cadaxa, são as composições de imitação arcaica, que, ao contrário das aparências, nos afastam das nossas tradições poéticas, mais do que nelas nos incorporam numa trama orgânica.

No caso de Horácio Costa, é o dialeto homossexual, com seu vocabulário específico e sugestões crapulosas. Aqui, a língua referencial - antipoética por natureza, sendo, como é, específica da prosa - toma o lugar da língua metafórica em que a poesia não só se exprime, como se deve exprimir. O vocabulário referencial não impede que muitos considerem João Cabral de Melo Neto, por exemplo, como grande poeta, para o que concorre o seu didatismo na temática, poesia não "do objeto", mas "sobre o objeto", o que é diferente.

Em Horácio Costa há, como ficou dito, a terminologia ao mesmo tempo desafiadora e salaz das relações físicas, poemas descritivos e narrativos, cheios de "grandes membros carnosos e intumescidos", pênises em ereção, "sexos entre as pernas" e "mãos masturbatórias". Ê o universo mental da adolescência, excitada pelos mistérios do mundo, pelas maravilhas da natureza e pelo deslumbramento das sensações inaugurais na idade do homem. O que melhor representa essa parte do volume não são os poemas supostamente "adultos", como se diz nas advertências cinematográficas, mas os quadros infantis, como "O lobo-criança":

às três da tarde
os adultos dormiam a sesta; eu e meus primos
escondidos no porão entre arreios fumávamos
e aos mais jovens mostravam os maiores os membros
seus grandes membros carnosos e intumescidos;
na penumbra, entre correias e arriatas, pelegos,
estribos e relhos, rescendia um mundo a suor
de correrias por campos e pernas.

É com hesitação que assinalo em Horácio Costa um poeta bilíngüe, cedendo, como tantos outros, à tentação ou à vaidade de poetar em inglês, "golpe de dados" que, excluindo-o da literatura brasileira, nem por isso o inclui na norte-americana. A vaidade e a tentação a que sucumbe Mendes Cadaxa é de ordem livresca, escrevendo no dialeto poético de Dom Dinis, inesperadamente útil no contexto destas considerações por estabelecer o contraste com o dialeto homosseuxual.

No ambiente extraordinariamente grosseiro da Idade Média (até um momento avançado do século XVII), a poesia cortesanesca foi uma tentativa deliberada de sublimar o erotismo, exatamente o contrário do que fazem os poetas homossexuais.
 


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