Poesia
de Maria Carpi bebe o século num sorvo só
Nos 143 poemas sem título reunidos no volume `A
Migalha e a Fome', a poetisa gaúcha mergulha
profundamente no tema da fome, abordando-o não
apenas do ponto de vista social, mas também
individual, e não apenas material, mas também
espiritual
A fome é um problema social crônico. A solidariedade para
com os famintos já produziu desde obras-primas da literatura,
como o clássico A Fome, do Prêmio Nobel dinamarquês
Knut
Hamsun, até nosso descarnado e vigoroso Vidas Secas, de
Graciliano Ramos, um dos pontos altos da ficção brasileira
do
século 20. Ou foi estudada como um fenômeno à parte
por um
sociólogo que foi moda no Brasil há uns 40 anos, o nordestino
Josué de Castro. Mas também continua servindo de motivo para
a
mais torpe exploração política e demagógica
de políticos sem
escrúpulos, como comprova a recente criação do Fundo
Nacional
de Combate à Pobreza, a ser preenchido por recursos captados
com o aumento da alíquota da CPMF de 0,30% para 0,38%.
A poetisa gaúcha Maria Carpi (Guaporé, 1939) dedicou ao
tema 143 poemas sem título, numerados e divididos em quatro
partes, reunidos no volume A Migalha e a Fome . Só que ela fugiu
do facilitário do tema e mergulhou profundamente em suas
dificuldades, abordando-o não apenas do ponto de vista social, mas
também individual, e não apenas material, mas espiritualmente.
Em
seu percurso, ela chega até à página em branco, metáfora
da fome,
e à palavra criadora, imagem impressa da migalha que a sacia.
Cumpre a tarefa com brilho peculiar, não apenas pela profundidade
com que aborda o contexto, mas também pelo brilho que adiciona
ao texto.
A voz poética de Maria Carpi não foi domada em escolas
nem se amarra a estilos: não é moderna nem arcaica, não
é da
vanguarda nem do retrocesso.
Apenas é. Conseguiu escapar da monocultura do rigor
cabralino que assola a poesia brasileira nos últimos tempos, mercê
da dimensão da obra do grande pernambucano, sem, todavia, se
deixar desencaminhar pela sedução do pitoresco. ??Sua poesia
é
tensa, mas calma. Não se impõe, mas também não
se omite:
participa, mas preserva. Sua palavra tem música, mas não
se
submete à melodia nem se deixa levar apenas pelo ritmo.
Para começo de conversa, ela não parte daquela adoração
onanista da palavra como fim, da palavra pela palavra, mas parte do
real como algo palpável.
Dois notáveis achados metafóricos demonstram essa sua
ligação com o real - mais do que o real, o rotineiro, o cotidiano
-,
que não quer dizer necessariamente prosaico. No poema nº 24
da
primeira parte (A Lavoura da Fome), pode ser encontrada esta
preciosidade: "E debruçar-me à janela das coisas, / deixando
o
chapéu de palha seca / num prego dependurado, feito sol." O
achado dessa metáfora está no acréscimo de elementos
abstratos
e inusitados à mera descrição de uma rotina morta:
as coisas à
janela em que a autora se debruça, a secura da palha do chapéu
(não me lembro de jamais haver lido em nenhum texto a lembrança
da secura da palha de que se faz o chapéu) e, finalmente, a
metáfora final do poema "feito sol". Essa comparação
absurda - do
chapéu dependurado num prego com o sol, boiando no céu -
contém uma carga de imaginação e de beleza que, à
sua simples
leitura, sustenta o poema inteiro, que, aliás, nada tem de realista,
mas pode até, sem exagero nenhum, ser definido como surrealista
(com imagens como "resmas de borboletas à boca molhada").
Logo adiante, Maria Carpi usa o recurso que pode ser dito
como oposto a esse, partindo de um elemento abstrato, mais do
que abstrato onírico, para desaguar numa cena de cotidiano
doméstico. No meio do poema 27 da primeira parte, ela escreve: "E
o encadeamento dos sonhos / como uma réstia de cebolas / sobre
o fogão que ficou aceso." Talvez seja útil acrescentar que,
muito ao
contrário do poema citado anteriormente, este último é
nostálgico -
o fogo é um elemento a mais na reconstrução da lembrança
de
uma casa de infância, ao mesmo tempo real e mítica.
Não está explícito no poema citado, mas decerto essa
"casa de infância" dispunha de oratório. ??A poesia de Maria
Carpi
não é, de fato, mística, mas é lavrada inteira
num ritmo de reza, de
ladainha, sem perder nunca um certo sotaque bíblico. "Valha-me,
pois, diverso / verbo para suprir-te a fome", canta no poema 29 da
primeira parte. "Dá-me o quinhão do imensurável",
ora, no último
verso da primeira estrofe do poema 39 da quarta e última parte do
livro (Ode de Amor e Fome - Sonata para Piano em Dó Menor).
Essa voz contrita é, como convém, humilde: "Não valho
o
pasto que rumino" (30 da primeira). É difícil aqui resistir
à tentação
de encontrar, não influência, mas, digamos, um certo parentesco
com outra alta voz da poesia feminina brasileira, a da mineira
Adélia Prado. Mas tudo o que em Adélia é explícito
em Maria
chega de forma sub-reptícia sem arroubos de fé nem confissões
de
amor místico. O que em Adélia é êxtase em Maria
é lógico: "O
ungido da fome não tem talheres / nem rompante de apetite.
Não..." (32 da primeira). O que em Adélia é eucarístico
em Maria é
cáustico: "E quem a breve existência / visitou sem fome, nunca
mais será saciado" (3 da segunda parte, A Página Branca e
a
Migalha). A certeza da redenção, que mobiliza Adélia,
não comove
Maria, que escreveu: "Tudo é para ser perdido" (9 da quarta).
No miolo de A Migalha e a Fome há toda uma digressão,
interessantíssima, aliás, sobre o processo de criação.
Trata-se de
uma digressão metafórica, pois aí não se trata
da fome de
alimentos, mas de palavras. ??A autora expõe ao leitor seu
processo criativo, exibindo com ele a criação poética
alheia e geral.
O desafio da página em branco é seu tema favorito: "Uma página
em branco / nada mais é do que a pele / que necessita ser tocada
/
para que algo, ou alguém, / desperte..." (4 da segunda); "A página
não garante o poema" (6 da segunda); "A página mais bela
é o
enlace / do precário com o insondável. / A desmedida no
fragmento, / A pátria, no exílio..." (16 da segunda); "A
página é a
fatura do real / e a migalha, poesia e sonho" (27 da segunda).
Maria Carpi não é de ficar carpindo, submissa ao impulso
natural da caridade diante do faminto. "A comiseração", ela
escreveu no poema 8 da terceira parte (A Colheita do Faminto),
"não é fome, / mas o preposto do fastio."
Pois "A penúria distribui-se / no que a abundância lhe
retém".
Mais do que um tom musical, a definição do dó menor
para
a sonata de piano que serve de subtítulo à quarta parte de
seu
poema-livro é um juízo de valor sobre a piedade. Não
se trata de
uma questão de mauvaise conscience, mas de consciência
propriamente dita, ou seja, da pressão exercida pelo faminto sobre
o saciado. "Disse-me o faminto: sempre / retornarei a puxar-te pelo
casaco"- assim ela dá início ao poema 12 da terceira parte,
encerrado aliás de forma magistral: "Sempre o dente a menos na
serra / que corta o tronco.
Sempre o outro / e, no outro, o múltiplo, a epidemia."
A poesia de Maria é como aquele verso que abre o primeiro
poema da última parte de seu livro novo: "Uma lentidão de
séculos /
a um único sorvo, sem vagas." E mais ainda, como diz no 28 da
quarta parte: "Essa desobediência interferente, / sem ordem natural
com as coisas." Parece-me que, diante disso, tudo que já foi
escrito por ela será ocioso e inútil acrescentar palavras
que não
cabem, uma vez que as citadas se bastam
In
O Estado de São Paulo,
Caderno
2, 18.03.2001 |