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Marcelo Coelho


Os Pesadelos da Memória


Nelson Ascher se firma como um dos mais significativos
poetas desde João Cabral de Melo Neto


 

Nelson Ascher está publicando dois livros pela Editora 34: ``Pomos da Discórdia'' (ensaios) e ``Algo de Sol'', seu terceiro livro de poemas.

Começo pela coletânea de ensaios. ``Pomos da Discórdia'' reúne, em sua maioria, artigos escritos para a Folha, tendo como assuntos o fim do comunismo, o ensino religioso nas escolas, o aborto, a guerra civil na ex-Iugoslávia, a Aids, as top-models, o feminismo.
Em todos esses assuntos, Nelson Ascher se mostra um polemista corajoso e refinado. É sempre capaz da intervenção precisa, informada e cortante, em que o espírito de desengano e de relativismo não apaga a clara opção pelos direitos humanos, pelo liberalismo, pelo esclarecimento.

Sobre a guerra iugoslava, Ascher tem a coragem de perguntar:

``Trata-se, afinal, de uma ou de várias guerras? Quem é o agressor, quem o agredido? ... Na Croácia, travou-se uma verdadeira guerra, que, segundo os croatas, seria uma manifestação do expansionismo sérvio, enquanto para os sérvios era uma luta da minoria sérvia da Croácia...''.

Especialista nas complicadas questões da Europa Oriental, Ascher comenta os 75 anos do Tratado de Trianon, que delimitou o território atual da Hungria; destaca de que modo as minorias, as fronteiras, os ódios se entrecruzam no mapa europeu. Cada povo que reivindica suas ``fronteiras históricas'' está pensando, na verdade, no auge de sua própria expansão étnica.

A História, para Nelson Ascher, está longe de ser aquela marcha triunfal do Espírito imaginada por Hegel e, depois, por Marx. Não há final feliz, nem sequer existe uma pacificação à vista. Ódios que remontam à Idade Média ressurgem na atualidade. E um festival de desrazão vem opor e aliar feministas e xiitas, o Papa e os muçulmanos. Contra todos, Nelson Ascher tem uma farpa.

Ironia contra as feministas: ``Uma mulher que mantenha relacionamento extraconjugal recriminará seu marido por sua incompreensão acerca da complexidade dos sentimentos, enquanto um homem pilhado em circunstâncias apenas aparentemente idênticas estará revelando sua completa incapacidade de participar de uma relação adulta e séria''.

Contra a Igreja Católica: ``O cristianismo foi provavelmente a religião mais intolerante que já tomou conta do planeta.

Comparativamente, o Islã era um paraíso de tolerância''. Não há razão, diz ele, ``para se supor que qualquer consenso religioso tão amplo quanto o da cristandade se apoiasse, em última instância, em algo distinto do uso da força, da coerção e do poder''.

Mesmo a vitória da tolerância religiosa na Europa do século 18 só se deve, diz Ascher, a um impasse bélico na Guerra dos 30 Anos.

Foi o acaso, a indecisão no combate entre exércitos católicos e protestantes que terminou favorecendo a instituição de uma escolha privada, de uma independência individual em matéria de fé.

Pessimismo? Talvez. Ascher escreve como alguém que, saturando-se de informação histórica, vê em tudo uma mistura de acaso feliz e ódios ancestrais; de barbárie sempre ativa e de civilização acontecendo quase por milagre.

O mesmo se aplica, nos dias de hoje, à homofobia, à campanha contra os direitos humanos, ao terrorismo norte-americano do ``politicamente correto'', ao feminismo, ao puritanismo católico:

Nelson Ascher luta contra tudo isto, de uma perspectiva ao mesmo tempo desenganada e sensata, perseguida e coberta de razão. Sabe que a História Universal não é nenhum conto de fadas; ao contrário, é um espetáculo só recomendável, se tanto, aos maiores de 18 anos.

Uma das seções de seu livro de ensaios se intitula ``Incorreções Políticas'': reúne artigos antifeministas, artigos contra certas reivindicações do movimento negro e assim por diante.

Seus argumentos são brilhantes e manejam com habilidade tanto informação histórica ``inconveniente''(por exemplo, havia escravidão na África) quanto o raciocínio abstrato.

Há, contudo, um tom, um estilo muito ``correto'' nesses textos de Nelson Ascher. É como se, contra a ``correção política'', ele usasse de argumentos ``corretíssimos'', com uma precisão, uma clareza quase que feitas de encomenda para irritar o adversário.

Sua elegância é bem malvada; suas ``incorreções políticas'' são, na verdade, ``perversões corretas''.

Nota-se isto no uso que ele faz do circunlóquio, do eufemismo, da linguagem erudita, do humor retorcido. Um exemplo: ``Os truculentos samurais nipônicos tornaram-se pacatos fotógrafos turísticos e só lançam mão de objetos cortantes para fazer sashimi''. Ou então: os homossexuais, ``como naturais defensores do sexo não-procriativo...'' não podem contrapor-se ao aborto.

Ou ainda: mulheres que aparecem na ``Playboy'', por exemplo, ``continuam bronzeando seus mamilos e outros recessos íntimos com o brilho dos flashes fotográficos''.

``Nipônicos'' por ``japoneses''; ``objetos cortantes'' por ``facas''; ``bronzear mamilos'' por ``mostrar os seios''... Há nesse tipo de retorção vocabular um humorismo virtuosístico, por certo, mas também uma espécie de perversa impertinência, de preciosismo no espírito de porco, que faz evidentemente as delícias de quem escreve (e de quem lê), mas não deixa de impor uma questão para o crítico.

Será que Nelson Ascher está ``à vontade'' quando escreve esses artigos? Não haveria um quê de desconforto, de escândalo até, encenado pelo estilo, enquanto a opinião, o conteúdo, deslizam com facilidade pelas linhas? Seus textos estão, em geral, cobertos de razão, mas é como se sobre a razão surgisse uma camada mais áspera, um grumo de linguagem, um pesadelo dicionarístico e monstruoso, para lembrar o título da coletânea de poemas anterior de Nelson Ascher, ``O Sonho da Razão''. O título se refere a uma gravura de Goya: ``O Sonho da Razão Produz Monstros''.

Monstros? Nem tanto, muito ao contrário. O vocábulo aberrante e precioso atua no texto como se fosse uma pedra, um pedregulho, um cálculo -para lembrar a origem etimológica deste último termo- a ser engastado no circuito impecável da argumentação.

Mas estamos nos encaminhando para o outro livro de Nelson Ascher, ``Algo de Sol''. Reencontra-se, nestes poemas, o espantoso virtuosismo técnico da coletânea anterior, citada acima, ``O Sonho da Razão''. É em ``O Sonho da Razão'' que se encontra, aliás, um poema que identifica a memória, a lembrança, com o ``cálculo'', a pedrinha que, em vez de localizar-se nos rins, ocupa o cérebro.

A questão da memória ocupa, novamente, a poesia de Nelson Ascher. Mas isso ocorre de vários modos. Há em primeiro lugar a memória histórica, o peso da história universal: um poema como ``A Estátua de Wallenberg'' narra, por exemplo, as desventuras de um monumento em homenagem a um herói antinazista, sucessivamente erigido e escondido na moderna Budapeste, conforme os interesses dos poderosos do momento.

Reescrevendo a fábula de La Fontaine sobre o lobo e o cordeiro, Ascher dá um espetáculo de clareza e versificação, ao reatualizá-la num diálogo entre um nazista e um judeu.

Mas a essa memória histórica -a do Holocausto, a do totalitarismo comunista- soma-se outra memória, a pessoal. ``Les Neiges d'Antan, ou Retrato de Outra Dama'' não só comenta um poema do livro anterior, como investiga com crueldade as devastações da idade sobre o rosto de uma mulher bonita.

A memória, aqui, é o contrário do perdão. Mas acontece também de alguns poemas lutarem, na verdade, contra o próprio esquecimento; como se o que foi escrito fosse apenas o que sobrou de uma inspiração, de uma idéia infelizmente esquecida.``Todo o poema se perdeu/ que estava em meus neurônios antes,/ tão logo foi, poucos instantes/ atrás, escrito...'', diz ``Orfeu e Eurídice'', o último poema, aliás, do livro.

Essa perda, esse esquecimento, estão presentes também em ``Outra Gata'', soneto em que o autor, tentando acariciar seu animal de estimação, que é esquivo, ``afaga o nada em vão''.

Usando de um tema muito baudelairiano, os gatos, Nelson Ascher nos aproxima na verdade da poética de Mallarmé, que buscava reduzir os objetos ``à sa presque disparition vibratoire'', à sua quase desaparição vibratória. Mas é contra essa fuga que o poema, ou a memória, estão lutando.

Lutam, principalmente, com as armas da perfeição formal. Os poemas de Ascher chamam a atenção pela sintaxe elaboradíssima -não raro, é uma única frase que serpenteia ao longo dos versos- e pela riqueza das rimas: ``ápice''/ ``esfiape-se'', por exemplo.

Nos dois casos, a sintaxe e a rima, temos por assim dizer um jogo com a memória do leitor: fluência e repetição, encadeamento lógico da frase e obstáculos sensíveis, sonoros, do verso, atuam em cada poema como um desafio, uma contraposição, um convite à leitura.

Reproduz-se assim, no livro de poemas, a visão do livro de ensaios: a História Universal se repete, em coincidências felizes ou tragédias que não podemos esquecer. Cada poema é também uma luta contra o esquecimento, inclusive o esquecimento de si próprio.

É uma poética que persegue o que desapareceu e se sente perseguida pelo que desaparece; que vê, reduzida a um átimo, a um instante breve demais para dobrar-se a qualquer discurso, a diferença entre o pressentimento e a lembrança, entre o passado e o futuro. Tudo leva o tempo de um relâmpago (``Manhã'') ou de um raio de sol, oblíquo, no crepúsculo.

Mas essa angústia, entre o pesadelo da véspera e o futuro agourento, conhece entretanto um alívio, o do amor físico. Nelson Ascher fala da mulher que, entre as pernas, tem uma máquina, um ``lagar de amnésia''.

O esquecimento surge, então, como espasmo feliz, como espaço de amnésia, como prazer; mas que, caracteristicamente, Ascher descreve com a linguagem mais erudita e rebuscada possível: ``contração de internas dobras'', diz ele, por exemplo, em outro poema erótico.

Quando parece haver esquecimento, surge assim o preciosismo vocabular. O sonho da razão é, para Nelson Ascher, o pesadelo da memória, o cálculo na alma. Lição de João Cabral de Melo Neto, certamente; lição de rigor e de maestria poética também.

Muito mais do que um discípulo, contudo, e bem mais do que um simples ``mestre'', Nelson Ascher se firma, neste livro, como um dos mais inteligentes, profundos e significativos poetas que o Brasil conhece depois de João Cabral.


LANÇAMENTO
O autor autografou os livros na Livraria Livre (r. Armando Penteado, 44,SP, tel. 011/67-2140).

AS OBRAS
Algo de Sol - Nelson Ascher. Editora 34 (r. Hungria, 592, SP,
CEP 01455-000, tel. 011/816-6777). 80 págs. R$ 15,00.
Pomos da Discórdia - Nelson Ascher. Editora 34. 192 págs. R$ 17,00.

(in Caderno Mais! - Folha de São Paulo, 27.10.96)

 



Nelson Ascher
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Claudio Willer