Não sabiam que aqui amadurecemos como os cocos de nossas praias: endurecendo. E duros como pedras, belos, ásperos e intratáveis corno o cactus do poeta, aqui ficai-nos contra as próprias leis da natureza e da sabedoria lógica, irias iluminados pela sabedoria mágica do conhecimento intuitivo e fundador de que só os poetas, os santos e os heróis serão capazes. Aqui ficamos, duros e indecifráveis em nossa teimosia, como a Esfinge de granito nas entradas de Tebas. Aqui ficamos, contra tudo e contra todos, na construção de uma civilização única no mundo, essa civilização construída por nossa própria solidão, tão bem definida no verso de um de nossos poetas, o saudoso Nertan Macedo:
— "couro, bando, papaceia,
o chão imemorial,
o bode, o cavalo, o boi,
o sentimento mortal,
o homem caça dileta,
refletida no punhal".
Em nenhum lugar do planeta, em nenhum continente, o homem conseguiu erguer, nos trópicos mais tórridos, uma experiência como esta que os cearenses ergueram, estão erguendo em nossa terra. É de certo, a primeira experiência de civilização bem sucedida, da raça dos homens, num dos brazeiros tropicais do planeta, onde ternos que inventar, ano a ano, a própria água que bebemos.
Unamuno dizia que os homens da Península Ibérica — os portugueses e espanhóis — são imprudentes. Que Portugal e Espanha são imprudentes e a imprudência é a maior de suas marcas. Pois, imprudentes somos nós os cearenses, que como o Cavaleiro de Cervantes tivemos que lutar com todos os moinhos de vento da natureza. Foi nossa bendita imprudência, de homens aderidos à terra difícil que nos trouxe até aqui.
Em nossas mãos nordestinas foi verdadeiramente fundado o país dos brasileiros. Aqui madrugou a nacionalidade. Aqui foi soldada a unidade do território. Aqui foi estabelecida a língua dos portugueses — nossa língua nacional. Aqui decidimos a opção de ser brasileiros, desde a carta de Martim Soares Moreno, que pedia ao Rei fosse o Ceará incluído como parte do Estado do Brasil. Adotamos a religião, os costumes, a arte de comer, a arte de vestir e a arte de morar ensinadas pelos colonizadores. Colonizadores, sim, mas civilizadores sobretudo. Pois, como ensina Toynbee, e com ele a moderna interpretação da história, a civilização de todos os povos passa pelo processo de colonização.
Neste momento, quando nas coxilhas perdidas do sul levantam-se veleidades de separatismo, com bandeiras erguidas por filhos de imigrantes alemães, que aqui chegaram, encontrando um país feito e perfeito — feito por nossas mãos — parece que devemos ser chamados de novo ao pau furado dos bacamartes com que ontem repelimos o retalhamento do território por holandeses e franceses. Injustiçados há séculos pelo poder central, é sobre nossos ombros ralados de nordestinos que repousa a segurança da unidade nacional. Para usar a terminologia platônica lembrada por Garcia Bacca, o Nordeste, especialmente o Ceará, é a katabasís da realidade brasileira, a descida ao "deep country", o país profundo de nossos afetos, de nossa coragem, e de nossa consciência.
Senhores Professores:
Aqui estamos na aula magna de uma Universidade. É aqui o lugar onde se elabora o pensamento de nossa gente. Aqui somos não só a elite, mas a elite das elites, no sentido etimológico e primeiro da palavra. Contou-me certa vez o saudoso amigo, o poeta Augusto Frederico Schmidt que, num encontro em Lisboa, entre Salazar e Juscelino Kubitschek, o presidente português observou-lhe: — "Senhor presidente, os nossos povos não pensam, não sabem pensar. Temos poetas, romancistas, mas não temos filósofos. E um povo que não pensa não pode sobreviver".
É claro que há certo exagero pessimista nas palavras de Salazar, ele mesmo professor universitário. Pois, além dos portugueses que nos precederam, aqui mesmo no Nordeste, o Brasil começou a pensar. A pensar, com Tobias Barreto, na escola alemã do Recife, mas sobretudo no Ceará, quando um pobre rapaz de São Benedito, chamado Raimundo Farias Brito, no alto da serra da Ibiapaba, vivendo em duas então pequenas capitais provincianas, Fortaleza e Belém do Para, operou o milagre de erigir o "'Opus" monumental de um pensamento original, à altura das mais surpreendentes aventuras do pensamento europeu em seu século.
É na Universidade que aprendemos a pensar. O aprendizado do pensamento se chama filosofia. Vale a pena lembrar a velha advertência de Sócrates de que os povos só serão felizes, quando forem bem governados, e que só serão bem governados, quando os reis forem filósofos e os filósofos forem reis.
Os donos do poder em geral freqüentam mais o pleonasmo que a gramática e são mais dados à redundância que à boa linguagem. Ora, hoje está em moda entre nós a palavra ética. E os donos do poder a empregam, a torto e a direito. Mais a torto que a direito. Pois, governadores de Estado, deputados e senadores proclamam a necessidade de "procedimentos éticos e morais (sic)" e das práticas de uma "ética moral"(slc) na vida pública. É o mesmo que dizer-se um quadrúpede de quatro pés ou um bípede de dois pés. A palavra "ética" vem do grego "ethos", que significa costume, como todo mundo sabe. E a palavra moral, derivada de "mos-moris" do latim, também significa costume, e é apenas a versão, a exata versão da palavra grega.
Estamos aqui numa Universidade. A palavra "ética" aparece pela primeira vez na Filosofia, no âmbito da primeira Universidade de Atenas, nos jardins acadêmicos de Sócrates, quatrocentos anos antes de Cristo. O primeiro filósofo a se ocupar da Ética, corno capitulo — e capítulo escatológico da Filosofia — foi Aristóteles em seus três grandes livros sobre a política: a "Ética a Eudemo", a "Ética a Nicômaco" e a "Grande Ética e a Política".
Trezentos e tantos anos depois de Sócrates, Cícero, em Roma, cunhou a palavra "moral", hoje de uso corrente em todas as línguas do Ocidente. "Devemos enriquecer nossa língua latina — escrevia ele — chamando moral — de "mos-moris" aquilo que os gregos chamam "ética", de "ethos". Assim a palavra grega "ética" foi substituída por "moral", no latim de Cícero.
Essa breve divagação, quase pretenciosamente erudita, tem sua razão de ser aqui e agora. Pois, ainda recentemente o país viveu uma espécie de apocalipse político, com a derrubada de um governo e a transformação da ética em moeda corrente dos diálogos políticos da república. Parece mesmo que se está propondo ao povo brasileiro um novo tipo de homem, em substituição ao animal político de Aristóteles ou ao pobre "homo economicus" dos tempos indigentes, já agora peremptos, do pensamento marxista. O "homo ethicus" é a nova consigna de nossos dias temerários e esperançosos. Sua chegada — ou a esperança dela — nos situa numa hora vestibular e inaugural da história, com todas as suas alvíssaras e todos os seus perigos. Pois, tanto podemos chegar à utopia socrática da "polis" em que os reis são filósofos e os filósofos são reis, como à complicada ingenuidade — se assim se pode dizer — da engenharia conteana da religião da humanidade. Isto é, ao culto de uma axiologia ética, à margem dos valores transcendentais do ser humano e da própria sociedade humana.
Os filósofos que trataram da ética — e foram praticamente todos eles — a situam corno a finalidade do saber humano e, pois, da universidade. Ela é a "réussite", o cumprimento da filosofia, da sabedoria. A sabedoria, como queremos todos, é "a coisa" da Universidade. O "ethos", o costume — supostamente o bom costume — é fundado sobre o conhecimento do bom, do belo e do verdadeiro. Isto é a ética em seu alcance final, que é também o alcance final da filosofia, sem o qual não se pode conceber a prática de um comportamento ao mesmo tempo sábio e belo e bom.
Heidegger, o reitor maior da filosofia do Ocidente, desde os gregos, convidado a vida inteira para escrever uma ética, nunca realizou o projeto que lhe era pedido. Mas em certa passagem de sua famosa "carta sobre o Humanismo", dirigida e dedicada ao meu saudoso amigo, o filósofo francês Jean Beauffret, ele trata da palavra grega "ethos", encontrada num dos fragmentos heraclíticos. E ao lembrar que "ethos" significa "costume", o costume de viver, sustenta que "ethos" tem a mesma raiz de "olkos" — casa, habitação, estadia. A estadia, a casa, a habitação, como mais tarde em Spinoza, supõe a moradia eterna do ser humano, a eternidade do homem. A ética é, pois a "coisa" da eternidade que carregamos dentro de nós e de nossa história pessoal, como queria Antígona, na tragédia de Sófocles. Como fonte do saber, só a Universidade chega à fundação da sabedoria, à fundação da ética. Esta, senhores professores, é nossa missão. Em nossas mãos está a chave do mundo ético, cujas portas são o próprio pórtico da Universidade.
Para concluir, Magnífico Reitor, doutores ilustres da Congregação desta Universidade, o comovido agradecimento do doutor menor que hoje aqui recebe vossa sagração e vossa ordenação. E com ele, minha homenagem comovida à minha terra e à minha gente do Ceará. A esta terra e a esta gente, que guarda, insculpida em bronze, a legenda de sua grandeza heróica, expressa na palavra de Gustavo Barroso:
— "enquanto outras regiões do Brasil se orgulham de feitos antigos e riquezas modernas, a glória do Nordeste é como a dos santos e dos mártires, feita de dores e provações".
Pois bem: está é a glória maior, a glória dos santos e dos mártires. Por ser temperada de dores e provações, é feita também de esperanças e promissões. E é a única que frutifica e que perdura.
Estas palavras foram tudo que consegui tirar da abundância de minha emoção — "ex abundantia cordis" — e da pobreza de meus talentos. Nem me justifico por elas. Justifica-se por mim aquele outro cantador das Ipueiras, Anselmo Vieira, na sextilha de sua viola sertaneja, recolhida por nosso Leonardo Mota:
"Pr’eu cantá na sua casa,
Meu patrão, me deu licença:
Se a cantiga não foi boa,
Desculpe Vossa Incelença,
Que às vez as coisas não sai
Do jeito que a gente pensa".
Fortaleza, 25 de maio de 1993