J. G. Nogueira Moutinho
Poeta grego nascido no Ceará
"Eleuteria" em grego
significa "liberdade"; É essa a palavra-chave de um dos mais impressionantes
livros da poesia brasileira, Peripécia de Gerardo. Seu autor,
Gerardo Mello Mourão, com O Valete de Espadas, publicado
há mais de uma década, irrompia violentamente contra uma
série arraigada de preconceitos em nossa ficção e
ensaiava pela primeira vez entre nós uma escrita onírica,
supra-real, mágica, que desvendava os íntimos refolhos do
cotidiano para afrontar a luminosidade diurna com os traços mais
noturnos da criatura humana.
A santidade e o êxtase
poético eram os dois pólos entre os quais oscilava o pêndulo
de sua prosa masculamente liberta de ambages. Na verdade, ante livros como
O Valete de Espadas verifica-se experimentalmente o postulado de
que nas grandes profundidades da linguagem não há diferença
entre poesia e prosa. O romancista violava despudoradamente os pseudo-limites
ransitando entre os dois domínios como Lautréamont ou como
Rimbaud transitaram: confiantes nos poderes secretos do verbo. Com a sua
Peripécia, livro que constitui uma espécie de sequência
a O País dos Mourões, Mello Mourão atinge o
amadurecimento a que os textos anteriores tendiam: total ausência
de efeitos, íntima simbiose do tema com a linguagem, justeza de
tom adequada ao enunciado de determinadas circunstâncias estritamente
poéticas.
No transcurso da leitura é
que Peripécia de Gerardo assume a sua função
secreta: Sua ambição inconfessada é retomar os grandes
sopros épicos do passado, reencetar a tradição aos
aedos, que sabiam simplesmente relatar os grandes ciclos aventureiros sem
a pretensão de tirar efeitos paralelos da linguagem: a beleza dos
seus cânticos estava na razão direta dos seus conteúdo.
Este é que infundia infundia no poema a sua beleza, uma beleza toda
interior, evidentemente. Mello Mourão pertence genealogicamente
à maior árvore tribal do Nordeste brasileiro. Ligados aos
Araujo Chaves, aos Martins Chaves, aos Correia Lima, aos Sampaio, aos Vera,
aos Bezerra, aos Feitosa, os Mellos Mourões integram um grupo parental
que, segundo Oliveira Vianna, "é dos mais poderosos de nossa história,
e cuja repercussão sobre as nossas instituições locais
de Direito Público — populares e oficiais — foi enorme." Baste dizer
que dominaram uma província inteira, o Ceará, terra em que
se encontram fundamente enterradas as raízes dessa estranha poesia,
dessa forte poesia, dessa violenta poesia elaborada por Gerardo Mello Mourão.
Nada há nela porém
que se contente com ser regional, pitoresca, folclórica, "paroquial"
no sentido que os ingleses dão a essa expressão. O poeta,
antes, sabe enlaçar aos elementos telúricos de sua província,
largas lufadas de um vento que nasceu na Hélade, soprou a vela das
naus descobridoras, ruge em certas estrofes homéricas dos Lusíadas,
e varre com um ímpeto maravilhosamente inaugural suas "peripécias":
podem assim afirmar que redije "em alto mar entre a madrugada jonia e a
madrugada de Maragogi — sudeste do país dos Mourões".
Efetivamente, o ar que circula
entre os diversos corredores deste labirinto poético é um
ar grego. Percorre as galerias do poema "o tornozelo dactilo", de
Apolo; o poeta se volta aos serviços de Afrodite e de Persefone;
leva a lira de Tibulo a tiracolo; examina o mapa de Eleusis junto ao Ponte
Vecchio. Ao contrário do que se poderia temer, o arsenal mitológico
não emerge através de truncadas cópias em gesso, mas
brilha serenamente como o país ancestral ao país dos Mourões.
O descendente longínquo dos facinorosos e rudes navegantes e bandoleiros
recorda-se de suas origens místicas e as declinas com a discrição
e o orgulho dos fidalgos que se sabiam "filhos de algo". Em Mourão,
a força mais atuante não é o passado, mesmo que este
seja arcaico; sua poesia é vida, e o que é mais importante,
vida não cerebral ou metafísica, mas estuantemente erótica,
máscula, latejante, fremente. O fatídico "eterno feminino"
guia as mãos do poeta, que escreve encarnado em sua estrutura carnal
com a mesma violência de Pero Lopes de Sousa violentando as índias.
A presença desse ancestral, celebrado como divindade totêmica
do clã, é obssessiva em todo poema. A maneira das litanias,
o poeta não o invoca sem réplicas "e de seus bagos venho".
As características genesíacas do poema, um poema vincadamente
do sexo masculino, espermático, inseminador, estadeiam-se dessa
forma, cavalgando o dorso das fêmeas: o poeta tudo incorpora, as
suas lembranças mais cruas e mais sublimes, mais ásperas
e mais harmoniosas num conjunto único, num movimento lírico
espontâneo e ágil, no qual as memórias do clérigo
redentorista no Seminário de Congonhas do Campo parecem o "adágio"
de uma existência aventurosa, calamitosa, ardente: "há uma
raça dos homens e uma raça dos deuses e a raça dos
que tocam pelos bosques dos homens as músicas dos deuses". É
a esta última que Gerardo Mello Mourão pertence.
"Eleuteria" — "Liberdade"
é essa efetivamente a palavra-chave da Peripécia.
O poeta apresenta-se em todo o transcurso de seu cântico como um
ser essencialmente, radicalmente, irremediavelmente livre. Mas a liberdade
é amor, ensina o cristianismo de São João e de São
Paulo: Mourão tem a suprema coragem de assumir essa terrível
dádiva. Por esse motivo, considero um dos mais belos e profundos
momentos do livro a referência a uma das místicas de sua especial
devoção, a francesa Margarida Maria Alacoque, que ele transforma
por mágica verbal em Margarida Mourão, assimilando o êxtase
da monja ante o Sacratíssimo Coração a um episódio
amoroso vivido quem sabe sob que latitude: "Moreno dois olhos negros
/ que parecia um Mourão / desses que descem a serra / de perneiras
e gibão / com uma rosa no peito / e uma viola na mão: / é
dia de dança e festa / da Virgem da Conceição: / pegou
a francesa branca / e mostrou-lhe o coração / — ai, gigolôs
arrastando / débeis fêmeas pela mão — / ficou a francesa
branca / mais branca do que algodão / e Jesus de Nazaré /
a carregou do salão / e em Paray-le-Monial / rolaram flores no chão
/ quando a louca margarida / na desvairada paixão / nas mesmas chamas
dEle / acendeu seu coração: / ai, Jesus das Ipueiras / ai,
Margarida Mourão!"
O mínimo que se pode
esperar da crítica responsável, universitária, estilística,
que se faz entre nós, é uma análise pormenorizada,
estrutural, linguística, semântica, deste texto revolucionário
que é Peripécia de Gerardo. Raras vezes a poesia brasileira
terá dito tão fundamente o que pretendeu dizer: "com tamanha
fortuna quanta / nunca entre amor e morte / alguém passara."
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