Gerardo Mello Mourão
Cartas de Gerardo e SF
Meu caro Feitosa:

 

Há quanto lhe devo uma carta? Só Deus sabe. E só Deus sabe como sou ruim de carta. Devo cartas a todo mundo, no Brasil, no Chile, no Panamá, na Argentina, no Peru, nas ilhas e nas antilhas. Devo cartas a Raul na Patagônia, a Paco em San Juan de Porto Rico, a Godo em Viña del Mar, a Joãosinho na China, a um padre na Cochinchina, a Yuko no Japão, a outros na França, na Alemanha, em Portugal. E até no reino dos céus devo duas cartas a Jorge Pérez-Román, que morreu sem resposta a duas cartas e uns desenhos que me mandou, de seu estúdio de pintor num banlieu de Paris, onde era o melhor pintor de seu tempo. Sou ruim de carta.

 

Acontece que, coisa de um mês atrás, passei umas semanas na casa de meu filho Gonçalo, a quem também devo muitas cartas e que é Ministro na Embaixada do Brasil em Assunção. Se você leu um conto meu em que conto a história do Coronel Alonso Artega y Malpartida, já se terá dado conta de que tenho uma velha paixão pelo Paraguai.

 

É o mais incontaminado país da América Latina. Uma espécie de Ceará mediterrâneo, que nem os chins e os coreanos que invadiram a doce cidade de Assunção, com suas lojas de gadgets e bugigangas eletrônicas, conseguem desfigurar. Mas isto é outra história.

 
O certo é que comprei um equipamento de computador com uma impressora a laser. Faz mais de um mês que esta estrovenga eletrônica está em minha mesa sem que eu queira ou saiba enfrentar sua telinha colorida e suas mensagens de files e windows. Um amigo meu, que tem a minha idade, tinha comprado uma igual.

 
Depois de três dias jogou pela janela a engenhoca eletrônica. "Em nossa idade — explic a ele — não conseguimos ter acesso a esses mistérios eletrônicos". Como você vê, na linha de cima saiu um erro na palavra "explica".

 
Meu neto, Antonio Domingos, que tem doze anos, arranjou agora um sujeito para montar a engenhoca. Sabe manejá-la como gente grande. No meu tempo, até para dirigir carro, a gente tinha de tomar aulas de chofér. Eles agora nascem choferando qualquer tipo de carro.

 
Mas em compensação, digo-lhe eu, não sabem montar num jumento em pêlo, nem arreiar um cavalo, nem tirar leite de cabra ou armar arapucas pra pegar passarinhos e engatilhar uma gangorra para pra preá no meio do canavial. Nem outras sabedorias que temos no sangue. Mas isso também é outra história.

 
O certo é que depois de algumas armações de Antonio Domingos, comecei a enfrentar o bicho eletrônico. Este é o primeiro texto que escrevo no computador. Mando-lhe assim as primícias de minha inesperada habilidade. Bater teclado, até que eu sei. Sou datilógrafo razoável e sei vadiar na minha velha IBM elétrica que me serve, e que parece estar olhando para mim com mágoa, ressentimento e ciúme por essa rapariga de "files" e "windows".

 
Sua carta e suas amostras arteiras de composição me provocaram, e aqui estou, olhando meio constrangido para as letras que brotam, como por milagre, no quadrado luminoso.

 
Isto é apenas um bilhete, para dar-lhe sinal de vida. Agora mesmo, em seguida, vou escrever umas linhas sobre sua poesia. Ainda não sei nas teclas deste artefato meio diabólico ou se na velha IBM. De todo modo, guarde estes microsofts word como o primeiro milagre eletrônico de que fui capaz.

 
E entre as coisa que lhe devo, contabilizo aqui seu entusiasmo poe essa caligrafia dos novos tempos e pelas experiências que ela pode oferecer a própria linguagem poética.

 
Mallarmé e Apollinaire, que eram fascinados poe essas feitiçarias gráficas, ficariam loucos se vissem esse pequeno prodígio eletrônico. Pound que jogou com caracteres chineses em seus Cantares, certamente saberia usar desses recursos novos.

 
Eu mesmo, como você pode ver em tantos meus poemas, recorri a alguns deles. Por enquanto, ainda não sei tirar leite dessa vaquinha, com tantas tetas de windows e macetes.

 
Vou ficar por aqui e vou agora tentar imprimir essas bem traçadas linhas. E isto com medo de ao mexer no ratinho, apagar tudo, em vez de imprimir, como aconteceu com as vinte primeiras linhas deste mesma carta.

 
Vamos ficar por aqui e meu abraço não eletrônico, mas de carne e osso. Com o sopro da alma e o músculo do coração.

 
Feitosa:

 
Agora é a sexta vez que eu tento escrever mais um bilhete. A engenhoca é mesmo o triângulo das Bermudas. As letras e as linhas desaparecem nela por artes do cão. Datilografo razoavelmente, até não perco tempo com correções, mas quando vou imprimir, o texto vai para o beleléu na telinha implacável.

 
Ontem, sábado de carnaval, fiz cinco bilhetes para você, que é o estreante desta aventura eletrônica, e o demônio engoliu todos na hora de imprimir. Quando penso que achei a chave da impressão, as linhas desaparecem. Na última tentativa, foi pior, as teclas não batiam mais. Virei, mexi, cutuquei todos os tables, windows e helps e o resultado foi que não consegui mais nem chegar ao exit da tela. Desliguei o monstro da tomada.

 
Estou recomeçando. Ontem, sábado, hoje, domingo de Carnaval, não tenho quem me venha dar uma luz nesta empreitada. Só depois do Carnaval espero um orientador. Sai na tela tudo o que não peço: um jogo de baralho francês com uma dama de copas rindo cinicamente da minha competência ou uma banda de música asiática tocando o hino nacional da Tailândia, onde uma vez tomei chá com o rei Bhumibol e a rainha Sirikit ou o hino patriótico do Nepal onde este pobre nordestino tremeu de frio ao pé do Himalaia e onde se aqueceu contemplando a deusa viva no templo de Katmandu, onde a gente paga 20 dólares para contemplar sua beleza num balcão de madeira, ao lado de um monge vigilante.

 
Mas chega de conversa, vou ver agora se consigo imprimir, para ver se consigo fazer de novo o texto que estava no meio, e que o gato do Samsung comeu antes de entregar à Action Laser.

 
Minha velha e fiel IBM-82 está rindo aqui ao lado da mesa, já não mais enciumada, mas vingada pelo castigo da traição com que a substituo por esta rapariga caprichosa de Microsoft, files e windows.

 
O pior é que cada uma das seis cartas que lhe escrevi é diferente e não consigo reproduzir. O pior é o texto sobre a poesia sua, que estava até saindo bom. Mas não há de ser nada. Vamos ficar por aqui, partir para a nova tentativa de impressão e vamos ver Deus por quem é.

 
Feitosa:

 
Bati este texto. Depois fui imprimir. Não imprimia. Levei 5 horas tentando e o bicho impressor não respondia. Saí para comer um naco de carne de sol numa casa de pasto da esquina. Não tinham.

 
Tomei umas talagadas de cachaça ruim e o enérgumeno me serviu um medíocre charque do Rio Grande do Sul. Voltei para casa indignado, disposto a retomar a luta contra a eletrônica.

 
De repente, em dois minutos, vapt, vupt, acertei. Está aí o texto, batido, escrito e pensado diretamente diante da engenhoca Laser. Vai aí. Ainda é Carnaval.

 
Diz minha mulher, Léa, que está lhe mandando os livros com dedicatória. Na hora de sobrescritar os pacotes para você, ela os trocou, e o poeta Luiz Martínez, a quem eu devia mandar uns livros para a Biblioteca Nacional de Assumção, recebeu a encomenda que era sua e manda-me perguntar "quen diablos es el caballero Don Soares Feitosa" e em que endereço pode encontrá-lo no Paraguai para entregar os livros...

 
"RESPOSTA"
Recife, 20 de fevereiro de 1994
Prezadíssimo
Poeta Gerardo Mello Mourão
Rio de Janeiro, RJ.

 

Tenho parte, capitão, tenho parte !

 Ouvi falar numa história distante, de um velho contra um peixe. Esse velho teria pegado uma briga tremenda com um grande peixe, o maior peixe de que se ouvira falar... mas tanto o peixe sempre fora peixe, como o velho sempre fora pescador, ambos, desde os tempos de Pedro, em perfeita simbiose.
 

Ainda mais, nunca se viu fotografia desse velho, nem desse peixe; daí minhas dúvidas, capitão, tenho minhas dúvidas — tudo não tenha passado de uma simples traíra, faminta, nalgum barreiro do nosso Ceará Grande.

 
Por outra, sou testemunha e testemunharei até sob espadas e azagaias, de uma outra luta, esta, verdadeira e comprovada:

 
Um outro personagem, — velho, e nessa história de velho é que ainda reside uma grande dúvida a ser esclarecida — numa briga tão gloriosa quanto aquela de Manoel de Ferros: "é o baque da fera" — lindo, seu Mourão !

 
Para mim, "a forja do equinócio forjara" é uma das grandes passagens dos Peãs, quando seu Manezin fez jorrar as juguleiras da onça com a parnaíba iluminada à lua e, como se nada tivesse acontecido, sai a trotar desfiando o novelo da linha do Equador... que Mourão entre os Mourões !

 
Mas, independentemente da beleza do poema, quero desmerecer a luta do antepassado: ele estava no elemento dele, posto que a fera era ele; com certeza, bem mais feroz do que a (coitadinha) da insolente suçuarana !

 
Nest'outra luta, a coisa é mais embaixo, seu Mourão:

 
A verdadeira briga entre um ancião ( estaria mesmo correto o batistério? ), aos 77, quando, pela idade, o cimento do tempo faz as juntas secarem à qualquer corrida em busca do novo. Velho não muda — daí a empolgação da luta.

 
Lemos — eu, Brennand, César Leal, Pe. Osvaldo, Pe. Sadoc, poeta Juarez e mais uma pequena plêiade de afortunados, a(s) sua(s) cartas: (aliás, eu mesmo as li para eles, com a tomada do BIG BANG ligada na potência máxima, fantástico, seu Gerardo)

 
Ali estão reescritas, mostrando o dobro da tenacidade, a história de Manoel dos Ferros e a do Velho !

 
Mas, boto dúvida no batistério: "é tempo:

 
Aos oito dias do mês de janeiro do ano da graça de mil novecentos..............................................e sete".

 
É que no meu velho O País dos Mourões, a gráfica como que por artes de não sei quem, achou por bem comer a dezena ...

 
 
Uma pesquisa, tipo carbono-14, através das expressões, da leveza do texto, e chegamos à conclusão que essa terceira luta também não foi lá grande coisa, pois:

 
 
É mentira: o poeta não tem, nunca teve, 77 anos !

 
Quem erra um explic a e, ao invés de, sisudo e sistemático, corrigilo encabulado, prefere dizer: vejam, eu errei (a caminho da perfeição) — disseram os sábios destas terras, unânimes, categóricos e hierárquicos:

 
— Tem no máximo 27 e no mínimo 17 anos de idade!

 
Eis a sua idade, meu poeta !

 
Daí a luta contra a engenhoca — de que resultará proveitosíssima amigação com rapariga nova e fagueira, tão boazuda quanto a desse boboca que nos preside — situar-se num plano igual à de Manoel e à do Velho: eles sabiam lutar, da mesma forma que o poeta — jovem — também sabe; sempre soube !

 
Onde, meu poeta, o senhor bebeu o Elixir ? Ainda tem ?

 
Prosa tão solta, espírito tão leve, não pode ter 77. É mentira. Ou teria, me assalta agora dúvida maior: 77 x 77, ou — sois eterno ? !

 
Com grande estima, SF

 
Segunda-feira de Carnaval — 1994

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