Carta
ao Presidente Bush de Mia Couto
(27-3-2003)
A legitimidade da
guerra no Iraque numa carta de Mia Couto dirigida ao Presidente
George W. Bush.
Senhor
Presidente:
Sou
um escritor de uma nação pobre, um país que já esteve
na vossa lista negra. Milhões de moçambicanos desconheciam que
mal vos tínhamos feito. Éramos pequenos e pobres: que ameaça
poderíamos constituir ? A nossa arma de destruição massiva
estava, afinal, virada contra nós: era a fome e a miséria...
Alguns
de nós estranharam o critério que levava a que o nosso nome
fosse manchado enquanto outras nações beneficiavam da vossa
simpatia. Por exemplo, o nosso vizinho - a África do Sul do
"apartheid" - violava de forma flagrante os direitos
humanos.
Durante
décadas fomos vítimas da agressão desse regime. Mas o regime
do "apartheid" mereceu da vossa parte uma atitude mais
branda: o chamado "envolvimento positivo". O ANC
esteve também na lista negra como uma "organização
terrorista!". Estranho critério que levaria a que, anos
mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden fossem chamadas de
"freedom fighters" por estrategas norte-americanos.
Pois
eu, pobre escritor de um pobre país, tive um sonho. Como Martin
Luther King certa vez sonhou que a América era uma nação de
todos os americanos. Pois sonhei que eu era não um homem mas um
país. Sim, um país que não conseguia dormir. Porque vivia
sobressaltado por terríveis factos. E esse temor fez com que
proclamasse uma exigência. Uma exigência que tinha a ver
consigo, Caro Presidente. E eu exigia que os Estados Unidos da
América procedessem à eliminação do seu armamento de destruição
massiva.
Por
razão desses terríveis perigos eu exigia mais: que inspectores
das Nações Unidas fossem enviados para o vosso país. Que terríveis
perigos me alertavam? Que receios o vosso país me inspiravam? Não
eram produtos de sonho, infelizmente. Eram factos que
alimentavam a minha desconfiança. A lista é tão grande que
escolherei apenas alguns:
-
Os Estados Unidos foram a única nação do mundo que lançou
bombas atómicas sobre outras nações;
-
O seu país foi a única nação a ser condenada por "uso
ilegítimo da força" pelo Tribunal Internacional de Justiça;
-
Forças americanas treinaram e armaram fundamentalistas islâmicos
mais extremistas (incluindo o terrorista Bin Laden) a pretexto
de derrubarem os invasores russos no Afeganistão;
-
O regime de Saddam Hussein foi apoiado pelos EUA enquanto
praticava as piores atrocidades contra os iraquianos (incluindo
o gaseamento dos curdos em 1998);
-
Como tantos outros dirigentes legítimos, o africano Patrice
Lumumba foi assassinado com ajuda da CIA. Depois de preso e
torturado e baleado na cabeça o seu corpo foi dissolvido em ácido
clorídrico;
-
Como tantos outros fantoches, Mobutu Seseseko foi por vossos
agentes conduzido ao poder e concedeu facilidades especiais à
espionagem americana: o quartel-general da CIA no Zaire
tornou-se o maior em África. A ditadura brutal deste zairense não
mereceu nenhum reparo dos EUA até que ele deixou de ser
conveniente, em 1992;
-
A invasão de Timor Leste pelos militares indonésios mereceu o
apoio dos EUA. Quando as atrocidades foram conhecidas, a
resposta da Administração Clinton foi "o assunto é da
responsabilidade do governo indonésio e não queremos
retirar-lhe essa responsabilidade";
-
O vosso país albergou criminosos como Emmanuel Constant um dos
líderes mais sanguinários do Taiti cujas forças
para-militares massacraram milhares de inocentes. Constant foi
julgado à revelia e as novas autoridades solicitaram a sua
extradição. O governo americano recusou o pedido;
-
Em Agosto de 1998, a força aérea dos EUA bombardeou no Sudão
uma fábrica de medicamentos, designada Al-Shifa. Um engano? Não,
tratava-se de uma retaliação dos atentados bombistas de
Nairobi e Dar-es-Saalam;
-
Em Dezembro de 1987, os Estados Unidos foi o único país (junto
com Israel) a votar contra uma moção de condenação ao
terrorismo internacional. Mesmo assim, a moção foi aprovada
pelo voto de cento e cinquenta e três países;
-
Em 1953, a CIA ajudou a preparar o golpe de Estado contra o Irão
na sequência do qual milhares de comunistas do Tudeh foram
massacrados. A lista de golpes preparados pela CIA é bem longa.
-
Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA bombardearam: a China
(1945-46), a Coreia e a China (1950-53), a Guatemala (1954), a
Indonésia (1958), Cuba (1959-1961), a Guatemala (1960), o Congo
(1964), o Peru (1965), o Laos (1961-1973), o Vietename
(1961-1973), o Camboja (1969-1970), a Guatemala (1967-1973),
Granada (1983), Líbano (1983-1984), a Líbia (1986), Salvador
(1980), a Nicarágua (1980), o Irão(1987), o Panamá (1989), o
Iraque (1990-2001), o Kuwait (1991), a Somália (1993), a Bósnia
(1994-95), o Sudão (1998), o Afeganistão (1998), a Jugoslávia
(1999).
-
Acções de terrorismo biológico e químico foram postas em prática
pelos EUA: o agente laranja e os desfolhantes no Vietname, o vírus
da peste contra Cuba que durante anos devastou a produção suína
naquele país.
-
O Wall Street Journal publicou um relatório que anunciava que
500 000 crianças vietnamitas nasceram deformadas em consequência
da guerra química das forças norte-americanas.
Acordei
do pesadelo do sono para o pesadelo da realidade. A guerra que o
Senhor Presidente teimou em iniciar poderá libertar-nos de um
ditador. Mas ficaremos todos mais pobres. Enfrentaremos maiores
dificuldades nas nossas já precárias economias e teremos menos
esperança num futuro governado pela razão e pela moral.
Teremos menos fé na força reguladora das Nações Unidas e das
convenções do direito internacional. Estaremos, enfim, mais sós
e mais desamparados.
Senhor
Presidente:
O
Iraque não é Saddam. São 22 milhões de mães e filhos, e de
homens que trabalham e sonham como fazem os comuns
norte-americanos. Preocupamo-nos com os males do regime de
Saddam Hussein que são reais. Mas esquece-se os horrores da
primeira guerra do Golfo em que perderam a vida mais de 150 000
homens...
O
que está destruindo massivamente os iraquianos não são as
armas de Saddam. São as sanções que conduziram a uma situação
humanitária tão grave que dois coordenadores para ajuda das Nações
Unidas (Dennis Halliday e Hans Von Sponeck) pediram a demissão
em protesto contra essas mesmas sanções. Explicando a razão
da sua renúncia, Halliday escreveu: "Estamos destruindo
toda uma sociedade. É tão simples e terrível como isso. E
isso é ilegal e imoral". Esse sistema de sanções já
levou à morte meio milhão de crianças iraquianas.
Mas
a guerra contra o Iraque não está para começar. Já começou
há muito tempo. Nas zonas de restrição aérea a Norte e Sul
do Iraque acontecem continuamente bombardeamentos desde há 12
anos Acredita-se que 500 iraquianos foram mortos desde 1999. O
bombardeamento incluiu o uso massivo de urânio empobrecido (300
toneladas, ou seja 30 vezes mais do que o usado no Kosovo).
Livrar-nos-emos
de Saddam. Mas continuaremos prisioneiros da lógica da guerra e
da arrogância. Não quero que os meus filhos (nem os seus)
vivam dominados pelo fantasma do medo. E que pensem que, para
viverem tranquilos, precisam de construir uma fortaleza. E que só
estarão seguros quando se tiver que gastar fortunas em armas.
Como
o seu país que despende 270 000 000 000 000 dólares (duzentos
e setenta biliões de dólares) por ano para manter o arsenal de
guerra. O senhor bem sabe o que essa soma poderia ajudar a mudar
o destino miserável de milhões de seres. O bispo americano
Monsenhor Robert Bowan escreveu- lhe no final do ano passado uma
carta intitulada "Porque é que o mundo odeia os EUA?"
O
bispo da Igreja Católica da Florida é um ex--combatente na
guerra do Vietname. Ele sabe o que é a guerra e escreveu:
"O senhor reclama que os EUA são alvo do terrorismo porque
defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Que
absurdo, Sr. Presidente ! Somos alvos dos terroristas porque, na
maior parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a
escravidão e a exploração humana...
Somos
alvos dos terroristas porque somos odiados. E somos odiados
porque o nosso governo fez coisas odiosas. Em quantos países
agentes do nosso governo depuseram líderes popularmente eleitos
substituindo-os por ditadores militares, fantoches desejosos de
vender o seu próprio povo às corporações norte-americanas
multinacionais ? E o bispo conclui: O povo do Canadá desfruta
de democracia, de liberdade e de direitos humanos, assim como o
povo da Noruega e da Suécia.
Alguma
vez o senhor ouviu falar de ataques a embaixadas canadianas,
norueguesas ou suecas? Nós somos odiados não porque praticamos
a democracia, a liberdade ou os direitos humanos. Somos odiados
porque o nosso governo nega essas coisas aos povos dos países
do Terceiro Mundo, cujos recursos são cobiçados pelas nossas
multinacionais."
Senhor
Presidente:
Sua
Excelência parece não necessitar que uma instituição
internacional legitime o seu direito de intervenção militar.
Ao menos que possamos nós encontrar moral e verdade na sua
argumentação. Eu e mais milhões de cidadãos não ficamos
convencidos quando o vimos justificar a guerra. Nós preferíamos
vê-lo assinar a Convenção de Quioto para conter o efeito de
estufa. Preferíamos tê-lo visto em Durban na Conferência
Internacional contra o Racismo. Não se preocupe, senhor
Presidente.
A
nós, nações pequenas deste mundo, não nos passa pela cabeça
exigir a vossa demissão por causa desse apoio que as vossas
sucessivas administrações concederam apoio a não menos
sucessivos ditadores. A maior ameaça que pesa sobre a América
não são armamentos de outros. É o universo de mentira que se
criou em redor dos vossos cidadãos.
O
perigo não é o regime de Saddam, nem nenhum outro regime. Mas
o sentimento de superioridade que parece animar o seu governo. O
seu inimigo principal não está fora. Está dentro dos EUA.
Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios americanos. Eu
gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein. E
festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem
argumentação e consumo de diminuídos mentais. Porque nós,
caro Presidente Bush, nós, os povos dos países pequenos, temos
uma arma de construção massiva: a capacidade de pensar.
Notas
do editor:
1.
Respeitada a ortografia de Moçambique
2.
Fonte: Moçambique
Editora