Gerardo Mello Mourão 
Caminho ao longo da costa
 
Caminho ao longo da costa 
sondando sempre
governando dois relógios aloessudoeste 
achava vinte braças
governando outros dois aloeste 
vinte e cinco braças dava em fundo: 
governador dos relógios 
dispõe o coração, amor, 
a hora tua
e as horas todas do quadrante horas 
de todos os quartos
Dalva prima e modorra e são todas as horas 
o caminho da tua quando 
o nordeste despenteia as algas 
a julavento de tuas coxas.
 
 

Assim é o mar: súbito me salta 
um pé-de-vento sulsudoeste ao sul 
com tempestade muita 
e o mar mui grande e grosso 
quinze braças de fundo de lama mole: 
não me atrevi fazer à vela
e à quarta do sudeste mandei fazer um aúste de
cento e vinte braças
tamanha era a tormenta e a nau metia
todos os castelos
perguntado o prumo respondeu teu nome sob as
ondas
e vou caçando as léguas e parece 
o mar mais alto do que a gávea 
quebra-se o aúste da âncora 
e me faço ainda à vela 
contra rezam de marinheiraria e quando 
fui varar na praia e pareceu-me 
podia cobrar terra 
quebra-se o traquete em dois pedaços 
e a ponta demorava a lessudoeste: a uns 
parecia cobrá-la — outros 
bradavam que arribássemos 
era tão grande revolta pela nau — que nos não 
entendíamos:
mandei meter toda a gente na coberta 
o piloto tomar o prumo e eu 
me fui à proa
e determinei fazer experiência da fortuna 
porque se não dobrava a ponta 
não havia onda varar 
senão em rocha viva onde 
não havia salvação: 
e prouve a Nossa Senhora e ao seu bento filho 
que a dobramos — e à madrugada 
surgias entre riso e prantos 
no galeão de Jânio e Pellegrino 
e quem soubera, amor, se nos partimos 
a mar mais alto a caravela errante 
sem cabres sem batel sem âncora, pois 
diz o piloto que vamos à fortuna 
contra rezam de marinheiraria.
 
 

Ruim o mar: meti
na caravela os que melhor sabiam nadar
as armas metidas em uma pipa funda por se não 
molharem
dois barris de mantimentos para oito dias 
e mandei à caravela que se fosse à terra 
e surgisse quando não desse seco e dali se fosse 
nas jangadas que levavam da nau francesa: 
Michelle, aliás Andrée, Michelle Taillandier 
Dolly, Annie, Janine, Claude talvez — quem sabe 
Sylvianne
aos olhos ouros de Ginette 
em quartel das ancas entre a nau francesa 
flutuavam no mar e ao mar do boulevard, Anne, 
Anne-Marie Aribeau asselvajava os seios 
à memória dos ventos negros 
do Senegal:
pisei a terra com assaz trabalho 
e pereceram muitos e eram 
lancinantes os olhos do Senador Jucá 
assobiando a toada à interminável noite: 
— vem, doce morte — e a morte veio 
o adeus na carta emburilhada em perfumes 
ce soir ou jamais — outros morreram afogados 
outros de bala e um 
que morreu de pasmo: 
de pasmo, Godo, continuamos vivos 
no bergantim de taboado de cedro 
e é pasmo estarmos vivos 
entre tantos mortos: 
de que morreram tantos?
Talvez Francisco de inocência 
o Capitão de seu vigor
Geraldino da loucura
de flechas de Eros Magdalena 
Maria Helena aquela noite
Edgar de um tiro de quarenta e cinco 
e de cansaço o Senador
Pederneiras por seu whisky
Pedro por cerimônia
Bráulio por cumprimento
morreu Clarice de volúpia pura
e em grande mar de mortos navegamos
trincando o vento até meia-noite e um dia 
será dia de mortos 
como todo dia
e João e Bernardo e Clara 
e os meus e os teus, Efraín 
se lembrarão de nós então 
no grosso mar onde navegam 
saudosos bergantins a ventos memoráveis: 
na selva de Berrueco o libertador arcabuzado 
Che Guevara com sua dália de sangue no coração 
o filho de Amaralina em mar de asfalto 
Camilo com sua cruz e seu fuzil 
boiamos entre os mortos Clodomir e boiam 
na espuma cravos de defuntos.
 
 

Quem sabe um dia, de chapéu na mão 
a saudação galante e antiga repitamos: 
"perdão, Senhora Dona Morte, 
por chegar tão tarde".
 
 

Nessa estrada paulista 
a que horas, Vicente, 
teu relógio parou?
 
 

Sabedor de amantes bem sabia 
hoje a doçura das amantes cruéis 
hoje a crueldade das amantes doces 
e quem achara a verdadeira 
a que de amor se nutre — quem achara 
a imolada imoladora 
rosa do cantor rosa do bêbado: 
a melodia de seu corpo ouvi e no caminho 
da Grécia
o poeta voltou por ela as costas à condessa da 
Itália
a melodia de seu corpo ouvi 
capaz só ela de o sonoro corpo 
o canto pleno ressoar
quando os cinco sentidos peçam morte
morte
peçam vida
vida.
 
 

Para isto sou vindo 
aprendiz da morte aprendiz 
da ressurreição da carne.
 
 

E uma noite tomou o Capitão conselho com os
pilotos:
não se podia ir pelo rio de Santa Maria Arriba 
os mantimentos se perderam 
as naus estavam gastadas e o rio 
era inavegável:
era a força do verão e o verão 
podia mais que a primavera: 
mandou-me o Capitão pôr uns padrões 
tomar posse do rio em nome del Rei Nosso Senhor: 
e contra a força do verão 
sem mantimento em nau gastada 
por rio inavegável 
em nome teu, amor, hei fincado padrões 
portos adentro portos afora 
e o meu padrão entre peluda relva 
na terra de teu ventre memorável.
Vinte semanas por tornar trabalhou Pero
e de seus bagos venho
quarenta anos trabalho por não tornar de ti 
desde a infância de Carmen Neyde Araci 
e Teresa, filha de Damiana, 
puta da beira do rio e todas 
caminho de teu caminho, Liberdade, 
amor de amar até à morte.

 

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