Gerardo Mello Mourão 
Indo nós para as náus nos deu
 
Indo nós para as náus nos deu 
por riba da ilha um pé de vento tão quente 
não parecia senão fogo 
ficamos todos mui espantados 
daquele vento: fomos todos com febre 
e na garupa do cavalo do Capitão meu avô 
o suor do cavalo e o suor do Capitão 
e o cheiro forte das folhas 
e o clangor das arapongas 
na ladeira da Água-Fria e no engenho Cadoz 
disse o Capitão:
Compadre,
este menino está com febre — e até hoje —
a náu capitânia foi de todo perdida 
caiu-lhe o cabre — navego 
o mar a febre o chão de folhas verdes e o canto 
das arapongas clangorosas 
fiz graus perdidos e com o fio da Parca se cobravam-
alcovas ao labirinto
trovoada seca de essudoeste 
e mui gram vento e não havia 
homem que lhe tivesse o rosto 
ia dar sôbela ilha não saltara 
súbito o vento: uma ilha — e quis
Nossa Senhora e a bemaventurada Santa Clara
 
 

cujo dia era
que alimpou a névoa e reconhecemos: era 
a ilha de Cananéia
(ilha do Bom Abrigo, 25 graus, Códice da Ajuda) 
contra o códice é desabrigada 
do vento noreste e suldeste: quando venta 
mete mui gram mar.  Um rio 
na barra de preamar tem três braças e dentro 
outro rio e em Dois Rios éramos 
dois mil e trezentos prisioneiros além 
de Demóstenes González e Agildo Barata e 
Belmiro Valverde 
e Osvaldo Franca ouvia sonatas 
e o sargento Francolino de olhos verdes e rosto 
de cobre
havia sublevado os navios e Aguinaldo César Cals 
amotinou a maruja e o marinheiro Gregório 
encostou o cano do fuzil na nuca do Capitão de 
Fragata
e Hasselmann tombou varado à bala
e íamos no bergantim e os condenados morriam 
nos porões
e os mariners americanos escarneciam no porto
e Braulio Guimarães os mandou à puta que 
os pariu
e Pacheco de Andrade os chamou de 
malditos
e eram oito ou nove braças de tempo até à ilha 
e a um braço 

no labirinto, Ariadne adormecida, 
mordi o fio da Parca
e o bacharel havia trinta anos vivia degredado 
nesta terra
e aqui estamos, Tomás, os degredados filhos de Eva: 
degredado do rio, da palmeira, das moitas olorosas 
do rifle do sertão
degredado da cana-caiana
e do cavalo melado e seus relinchos
e era uma vez um touro e seu urro nas noites de
Ipueiras
e o canto de um galo sob as goiabeiras do quintal 
era uma vez teu braço poderoso contra o trovão 
e o raio
— "Capitão" — diziam — e à porta 
da igreja entre imagens silenciosas 
eu te sabia Deus: 
degredado do avô, do cavalo estradeiro 
não cante o menino perdido outra canção na 
estrada:
por seu tom
saiba talvez um pássaro errante 
caminho de voltar: 
no pátio do Hospício de Santiago mostrava Hugo 
Alexandre:
repete um louco a incessante história há trinta 
anos
de repente, quem sabe, a palavra delirada 
encontre o fio de Ariadne 
canta, Tomás, Gerardo em seu labirinto e parte 
com Pero Lopes com oitenta homens 
pela terra adentro com teu homem verde, pois 
o navegante se obrigava em dez meses 
tornar ao porto com 
quatrocentos escravos carregados de prata e ouro: 
assim partimos desta ilha 
os quarenta besteiras e os quarenta espingardeiros: 
ali temos estado dias e séculos e neles 
nunca vimos o sol: 
de dia e de noite nos choveu sempre 
com muitas trovoadas e relâmpagos 
nem nos ventaram outros ventos senão 
sudoeste-sul
grandes tormentas destes ventos e tão rijos 
que em nenhuma parte os vi ventar 
perderam-se nossas âncoras quebraram-se nossos 
cabres
se apartaram de nós os bergantins 
e estava o bacharel de Cananéia no quarto da
modorra, bacharel
da Gávea e do Leblon, de Villaguay e o bacharel
de Africa e França e Copacabana e Buffalo, USA,
bacharel do Cerro Castillo e de Saint-Cloud
bacharel de Itabuna e Caballito agora Virrey
Loreto
bacharel de Ipueiras e Alagoas e de Viña del Mar 
repete ao mar Pacífico a cantilena do louco 
a pelicanos atentos e gaivotas levianas repete 
em tua flauta o teu degredo 
dos engenhos da serra e dos bodes sertanejos 
teu degredo
de Carmen Dora e Lúcia Isabella 
de todas elas:
era tanto o vento do nordeste 
que virando no bordo do mar me levou 
o traquete d’avante.

 

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