Gerardo Mello Mourão 
Pelas restingas perigosas
 
Pelas restingas perigosas
levávamos tudo bem olhado e sondado quando 
surgiram as sete náus francesas 
a buscar mulheres e gados a França: 
fugindo delas e dos mares que me comiam, saí 
a umas terras — tudo quanto se pode imaginar 
de temperadas e boas 
de muitas águas vivas e muitas e grandes madeiras 
e este ano para mim todo foram descobrimentos 
navegando por dentro das bahias, correndo aloeste 
um dia um navio pirata de dezoito peças de 
artelheria com que pelejei 
me matou toda a gente, que foram dezenove 
homens
não ficando mais que três e um menino todo em 
pedaços
e eu fiquei com vinte e três feridas, com uma das 
mãos cortada
e uma cutilada no rosto e preso em terra 
estrangeira
os capitães covardes pediam minha morte 
por ser eu da raça dos que descobriram o mundo 
e a possessão das terras — e vieram 
mulheres de Dieppe intrigar 
contra minha cabeça os capitães 
que a meu rei não servem — e de seus alcouces 
polacas mal paridas e megeras em fúria
esses cães açularam: e os que estamos 
a serviço de descobrir e possuir a terra 
freqüentamos a morte.
 

Atestado de óbito — cartório de Sobral,
4 de novembro de 1856:
"— o Coronel João Bento de Albuquerque, branco,
viúvo, de 70 anos, morador no Sítio
Algodões, faleceu nesta data por desgraça
de eleições e era gente dos Mourões" e por
outras desgraças
por desgraça e por graça de amor
é nosso exercício a gentileza da morte — e este
é o punhal de Vicente Gomes Parente
e pendurado entre o Goethe e o Shakespeare sua
bravata
goteja sobre a estante o fantasma 
de suas punhaladas:
"I am not so sexy as to like blood" — ouvira
Meyer-Clason —
e a condessa
sorria entre a pistola do conde e o rosto pálido do 
aventureiro russo 
e não houve sangue e já não era em Veneza 
o caminho da Grécia: por um rastro de sangue 
trago notícias da Grécia e meu tetravô 
ocupava o mundo
e ensinava a partir e chegar da viva morte 
e morava no lombo de seu cavalo alazão 
e o chão em que se erguia 
não lograria ser mais vasto 
que as patas de seu cavalo — e na garupa
levava sempre o par de alforjes de couro e nos
alforjes
lençol de linho e manta de cochonilha e um frasco 
de alfazema do monte:
em toda estrada há sempre uma serrana e sempre 
a caminho do amor — e por ali
é o caminho da Grécia: nem se despeça 
dele o coração do peregrino — e para a bem-amada 
rescenda sempre o macho nos lençóis de linho 
à alfazema do monte: assim
Lancelote da Franca na guerra da Bahia à frente 
de seu terço de soldados em sua armadura 
fulgurante saía a combater o bátavo 
os cabelos e o corpo banhados de perfume 
e o hebreu Antônio Dias Paparobalos se vendeu ao 
holandês e os urubus da Bahia 
recusaram o pasto de seu corpo entre a carniça 
de portelas raposos e batistas 
e a tríade de súcubos insepultos: 
as raparigas desejavam o corpo de Lancelote da 
Franca
com a senhora Morte era galante — e assim 
corresse seu sangue entre perfumes Claudenor: 
com três cabras armados invadiu a casa de Otávio 
Aires
e carregou a filha mais moça 
galope ao vento da estrada de Limoeiro 
no cio da madrugada: — sempre 
sonhei ser raptada em teu cavalo —
de Arapiraca a Porto Real podem beber de graça 
em todas as tabernas 
e disparar as pistolas no caminho e era 
entre os canaviais da várzea 
cheiro de pólvora cheiro de folhas e cheiro 
do suor dos cavalos excitados ao cheiro 
da semente humana — e Laura
Laura Nogueira — sou eu, my dear, 
vim desde o norte para te ver 
posso ficar três dias, meu marido me espera na 
próxima semana,
no quinto dia o avião da Panair se espedaçava 
entre Pernambuco e Ceará e entre os destroços 
havia um brinco de ouro numa orelha mordida e 
o fogo
poupara os cabelos à la garçonne os olhos cinza e o
coração boiando sobre os dilacerados seios 
e o coração 
cercado de chamas
Cor Jesu, o Padre Mateo, o Padre Vicente, o Padre 
Smithuis de voz melodiosa na noite de 
Congonhas
Cor Jesu, fornalha ardente de amor, miserere
nobis — e o coração 
cercado de labaredas e o êxtase 
de Margarida Maria Alacoque: 
moreno dois olhos negros 
que parecia um Mourão 
desses que descem a serra 
de perneiras e gibão 
com uma rosa no peito 
e uma viola na mão: 
é dia de dança e festa 
da Virgem da Conceição: 
pegou francesa branca 
e mostrou-lhe o coração 
— ai, gigolôs arrastando 
débeis fêmeas pela mão —
ficou a francesa branca 
mais branca do que algodão 
e Jesus de Nazaré 
a carregou do salão 
e em Paray-Monial 
rolaram flores no chão 
quando a louca Margarida 
na desvairada paixão 
nas mesmas chamas do dele 
acendeu seu coração: 
ai, Jesus das Ipueiras 
ai, Margarida Mourão!
 

E súbito Araci recorta os hinos, Maldonado, 
os hinos de Araci de Almeida — e os dedos 
do poeta dedilhavam 
as grades da prisão — e o sal
das lágrimas das fêmeas lhe temperava a boca:
c'est moi, Mylène, mon chéri, 
venue do Porto Alegre pour te voir — e em Porto 
Alegre
Aída matou o gigolô na Casa Verde 
com cinco tiros de um revólver Taurus 
e Laura Martinez abriu uma loja de flores — não, 
Laura Nogueira entre Pernambuco e Ceará 
loja de prantos loja
de corações, pois nem o fogo os destrói, y tengo,
Fleifãs
neste bairro de putas de Buenos Aires o coração 
hecho pedazos.  Silvinha — lembras —
desatou o fecho-éclair do blue-jeans e fez amor 
todas fazem amor, querido,.mas não em 
madrugada de chuva 
no cemitério sobre o túmulo do avô com Manuelito 
Porto — e os mortos 
dormem entre seus cravos amarelos e a semente 
da morte — a morte 
dorme
na relva de suas coxas no túmulo de sua mãe: 
Gilena se deitou com o francês do bar 
quem faz o amor, quem faz a morte? 
ninguém faz nada desde aquele tempo e as velhas 
sabem ruminar e moer na memória 
memórias de amor e morte — e caminham 
castas para o cemitério e sobre 
suas louzas, os blue-jeans arriados
Silvinha e Manuelito e Gilena e o francês do bar
— Dominique, voilà —
e uma tarde
sentarei meus filhos em meus joelhos 
para fazer o que sei: 
contar histórias de amor e morte e sei 
o caminho da Grécia e o caminho 
da sepultura e ali 
sobre os ossos de Apolo 
farei amor contigo, amada, 
e macho e touro e Mourão 
te escreverei no ventre 
um nome. 
 

 

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