Gerardo Mello Mourão

Estivemos oito dias esperando

Estivemos oito dias esperando por um bergantim de nossa companhia se perdera: como não veio mandou o Capitão pôr uma cruz na ilha e nela atada uma carta emburilhada em cera e nela dizia ao Capitão do bergantim o que fizesse vindo ali ter: e emburilhada em cera e mel fincada com punhal no coração esta é uma carta, amor, é teu canto de morte — epitáfio da primavera: naquela madrugada do Hospital dos Espanhóis: quando teus olhos foram se afundando na doce caravela de teu corpo, a herança de um quinhão de luz tocou aos meus e a camarinha doou ao coração sua parte de ar e no formal de partilha o silêncio era só meu e o rumor de uma voz — individido — sucedeu ao ouvido solitário: o amante da amada morta tem um ouvido a mais et video cherubim ac seraphim et audio: no rádio de Paquita o tango de ontem é agora mais forte sobre a rua Benjamim Constant e no Largo da Glória, ó Paulo Flerrúng, as merencórias putas são mais tristes batem mais os relógios pela madrugada no sobrado de Alice e no bar do Soares se contemplam mais as cadeiras espectantes: partiu quem repartia comigo o ar e a luz e o silêncio e o rumor e de ar e de luz e de silêncio e vozes resultou, amor, mais rico o teu cantor — e agora resta percorrer teu inventário e nele a doação de um anel, de uma estrela, de um céu de agosto e a promessa da resposta ao beijo na defunta boca — e quem pudera cantar — que voz se modulara dentro deste quarto quando das maçãs do silêncio vive a morte de teu rosto — na maçã de teu rosto — pálida rosa entre as outras flores: pois à pálida rosa submissa a rosa de ferro do rosto de Albrecht Engels flor cinérea dos olhos de Heinz Lorenz e outros guerreiros alemães: celebravam a princesa morta e Chagall e Edgar e os cárceres se abriram requiem para a infanta morta Guido Corti e Edmondo di Robilant, dos condados de Veneza: à pálida rosa respondia a flor de mármore do rosto dos fidalgos de Itália e Enrico Marchesini era florentino e chorava e Amleto Albieri era vêneto — e chorava e George Blass, o formoso velho, era do sul da Alemanha — e chorava e celebrava a lágrima o melhor azul de seus olhos renanos e Meyer-Clason viera da Westphalia — e chorava os sinos dobraram nas lpueiras e entre os poetas — entre Marcos Konder e os outros — entre bons ladrões bons assassinos tomados de doçura — e a doçura pungira o duro olhar de Manoel Bento e o belo inesquecido rosto de Frau Malik — viera de Bonn am Rheín e chorava erue, Domine, trenavam vozes Padre Frederico Prfllwitz — viera da Prússia e chorava viera o Padre Fernando do Rio Comprido — e chorava e Frei Meinulfo da Baviera e chorava e o Padre José — de Turim — e chorava e Monsenhor Felício Magaldi era napolitano e chorava e o Padre Waldir era alagoano — e chorava e o grande rosto compassivo de Castro Pinto — chorava. Naquela tarde sobre o lgarapé das Almas no país do Pará a velha Maria Cândida sentiu um nó nas entranhas transfigurou-se de súbito à beira das águas e clamou a Manuel e Lourdes e Antônio e João e Zaida e aos vizinhos atônitos apontando a vitória-régia que se afundava nas águas ao terral de junho: — Magdalena está morrendo — é a flor da morte no rosto da princesa" — e no rosto mongol do velho pai, da velha mãe no igarapé dos olhos dourados a pétala da morta desmaiava. Pois canto agora sua sombra: já rosa entre as mulheres — conhecido foi seu corpo ao macho à borboleta ao óleo-santo e à manjerona em flor: entre formas de brisa e moldes de luar é lida a sua forma — e sabe dela a raiz da relva — e à volta das hortelãs cheirosas Yugo Kusakabe — era japonês — e chorava e lavrou-lhe a pedra da sepultura e por ali sei o caminho do homem em sua mocidade. Sentado junto à Ponte Vecchio o poeta examinava o mapa de Eleusis e ensinava aos pés várzea, lezíria e vertentes do monte e a lira de Tibulo a tiracolo pastor da morte a morte o pastoreia venho de onde para onde parto Madgalena da raça dos Mourões na adega do sepulcro amadurece a ancoreta do vinho desejado — sou o axnante de bronze: da espada empunho os copos e nos copos de seu vinho com a ponta da espada mergulhe a macerar-se o coração e da romã partida regale-se na lágrima a semente de amor e morte para sempre esparzida em teu vôo E as amantes na alcova e os algozes no ergástulo e o confessor na extrema-unção e o médico na autópsia sobre o peito hão de encontrar-me de teu pássaro e teu nome a tatuagem azul ......................... (e ainda cantarei de ti) ..................... E foi o funeral — esse — de Magdalena domadora de coração nas moradas altas do cemitério — testemunha Efraín — e uma palmeira cresceu de súbito de sua fina cintura — lembra Bárbara — e seu jeito guarda na boca desse frade alemão nome de milagre — good night, sweet Princess, amadures no chão da sepultura e da haste do florido corpo nas auroras eternas te encontrarei, formosa, e a mão arredondada às curvas morenas macia de madeixas a mão demorarei no fruto de teu rosto e à luz dos olhos põe-te um vestido verde por formosura como a pera quando madura.


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