Gerardo Mello Mourão

Naquele tempo

Naquele tempo começaram a acontecer coisas já muitas outras coisas haviam acontecido entre a Serra de São Gonçalo dos Mourões e a Mantiqueira no país das Gerais onde os profetas erguem da pedra a mão de pedra e as pálpebras de pedra sob o céu do deus barroco: conviva deste deus, de seus profetas nossos olhos cruzavam-se na pedra do patamar — cruzavam as palavras e os sabres dos anjos, dos demônios e do filho da raça dos Mourões e ao seu olfato o calendário abria os primeiros pelos de Araci na axila aberta e o tempo de decompor da clave de seus nomes o canto-chão dos claustros dulcis memoria super mel et omnia tota pulchra a mão de Carmen afagada uma noite em Crateús e a presente litania das ausências Francisca, Neyde, Dalila, qui tollis peccata mundi e Nenen Pegas de nuca raspada qui tollis peccata mundi e baste o nome delas — Jacqueline inventada de boina branca e de saia amarela non, Monsieur, je suis de Lille e o lírio no pênis de seu caule qui tollis peccata mundi hoje é festa de Santo Afonso, Afonso Maria de Liguori e o Padre Joaquim van Dongen mais o Padre Xavier Meurtens mais o Padre Antônio Smithuis e o Padre Paulino van Donker CSSR Congregationis Sanctissimi Redemptoris distribuíam a abundância da redenção e entre o caminho do Gólgota e as notícias do Gólgota a aflição dos olhos e o espanto dos ouvidos interpelava o Redentor como cruzar caminhos de Pero Lopes de Souza e caminhos da Grécia e receber as notícias da Grécia anunciadas na flauta de taquara aos sete anos na ribeira do banho às coxas de Teresa, filha de Damiana: e três coisas me são dificultosas de entender e uma quarta eu a ignoro inteiramente — gemia Salomão — testemunha Octavio — o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar e o caminho do homem na sua mocidade — e os olhos de sabedor do azul e do mar e da pedra dirigiam a águia, a cascavel e os navios teléporos no céu no chão na estrela d'alva e no Boldrié de Orion; a espada pendurada sobre os oceanos desde alturas matinais de Congonhas do Campo onde à naveta de prata ao turíbulo de ouro ao cristal das galhetas onde ao sino de bronze onde ao linho rendado e à túnica de pedra de Isaías temperava-se a voz e os olhos eram achados e perdidos. Mas onde a amorosa Ariana a tirar do coração o fio e da mão pura ao puro coração riscar no musgo o caminho da alegria aos rapazes e raparigas de Atenas? Haud procul a templo Dianae in Via Appia os soldados em exercício pela Via Appia e em exercício por dáctilos exatos de repente Marco Túlio e a mão de Múcio Scévola ardendo como um facho e na esquina da cesura em seu hexâmetro os olhos lacrimosos do poeta forsan et haec olim meminisse juvabit e era aprendida a via de Enéas ao coração de Dido, às praias de Lavínia Laviniamque e a lição de Geometria e o caminho mais curto e o teorema de hipotenusas e catetos e os teólogos esse non potest esse non esse la via era smarrita e todas as vias na Via Sacra se apagavam stabat Mater Dolorosa juxta crucem lacrimosa dum pendebat filius — e o filho dos Mourões pendia seu pêndulo inumerável sobre a cabeça de pedra de Habacuc e Joel e as fauces do leão de Daniel, da baleia de Jonas, da tenaz de carvão aceso na boca de Isaías: e do alto da cruz e da nuca raspada de Nenen Pegas e dos olhos de Carmen suplicados à lua o filho dos Mourões pendebat na sua mocidade onde pendia do cabide de cedro o fraque desolado de seu pai. E às vezes, naquele tempo, a sombra das bananeiras debaixo dos laranjais caíam das folhas verdes duas laranjas maduras e os pintassilgos feridos: e do canto dos pintassilgos e da plumagem de sangue das cambaxirras mortas de seu canto de morte nas copas ensombradas do pomar pendia o filho dos Mourões naquele tempo. Onde a voz a língua intata? Wees gegroet, Maria, virgo virginum praeclara himi jam non sis amara Onde a boca que era minha, onde a sílaba de lírio a que por maios e noites respondia de seu rosto a rosa rosa? Em sua pétala preso à leve pressão de um beijo pendia o poeta em flor e era o caminho do anjo e era o caminho do bravo e o filho dos Mourões Mourão era a serviço de sua Dama Wees gegroet, Maria — e no peito do pé imaculado uma rosa se abria e ao rastro de seu aroma puderas caminhar. De espada e citara sobre o rastro da sandália de ouro Bernardo de Claraval e os outros cavaleiros tota pulchra es Maria Platonis in cunis dormientis vinham as abelhas à boca de Platão e à boca do filho dos Mourões no tempo de teu nome in illo tempore Wees gegroet, Maria, voll van genade. E às vezes era a hora de escandir Ovídio, Horácio coronemus nos rosis e murchavam as rosas de Propércio nas bochechas de Cynthia — Cynthia prima fuit Cynthia finis erit Tibullo à sombra dos pinheiros resinosos e o metro de ouro líquido suplicava ao azul da serra mineira mares de Odisseu à voz melodiosa do Padre Luís Weerdesteyn e este é o Padre Gaspar Haanappel e sobre sua soberba fronte bátava estronda Marco Túlio a retórica romana discreteia a severa concisão de Caio Tácito e os demônios passeiam entre clérigos operosos e anjos indolentes: do outro lado do mundo, entre charutos fumegantes, aldeia de Wittem, Rosendaal, Holanda, os teólogos discutem — e o Padre Gregório Wutz traz na flecha certeira o logaritmo, o risco da parábola e o verso de Homero — e do escudo de Aquiles pendebat e de repente entre copos de cerveja holandesa e silêncios e algazarras de estudantes sob tetos venerandos num rumor a palavra e a sombra de Platão transitam pela sala ao gesto lento, à voz sonora: Caetano morreu cedo. E ali, Angelo, Américo e Walter e Geraldino pastando a flor e a erva no tempo da loucura — "vejo pássaros e pássaros voando com eles o padre Michelotto" e Agostinho no vôo terrível escolheu a morte do alto do penhasco de onde pende o filho dos Mourões Todas essas coisas iam acontecendo e muitas outras aconteceram naquele tempo e dele quem sabe ainda hoje pende o filho dos Mourões. O Padre João Augusto Combat ordenador da sintaxe portuguesa e da música alemã praticava os poetas e a disciplina da Estética são uns olhos verdes verdes são verdes da cor do mar — e o rosto triste do poeta do Maranhão se macerava e o filho dos Mourões pendia desde além das esrelas de uns olhos verdes. Desta capela cheia de santos pálidos pálido partia o estudante Aureliano para o quarto de Manuel Antonio no país de São Paulo — e sob o travesseiro oculto o poeta apresentava a noite inteira as cortesãs literárias as lívidas amadas. Aly Biron. Ali Shelley e ia o caminho oferecendo à rudeza das botas massacre de açucenas. Gasta-se o círio pascal no castiçal de bronze e o coração não gasta o amor, o aroma das violetas remotas: respirei quanto pude a flor divina do país das Congonhas e a pulmão preparava aconchego ao aroma de tua rosa à lavanda da Tessália e ao cheiro do mar de Pero Lopes de Souza e de seus bagos pendo. E era o Padre Caetano Braan rosae rosarum rosis e o Padre Celestino Tyndall e o Padre Leão Panis doctor sapientissimus latinitatem Sanctae Matris Ecclesiae odi hoje darei a aula de Rhetorica em latim da idade de prata — Tácito — hoje a aula de poética em latim da idade de ouro e este é o Padre Atanásio Geerlings e durante sessenta anos pedia a Deus a graça de morrer de repente temia prolongar-se moribundo e ser vencido no último duelo com Satanaz — e Deus mandou-lhe a morte súbita aos setenta e oito anos: seus cento e trinta quilos de guerreiro bátavo abateram-se à porta do banheiro, à saída do banho e o guerreiro bátavo que só tinha medo de si mesmo ludibriou o Diabo e aguarda entre os ciprestes do cemitério claustral do Convento da Glória de alma lavada e corpo lavado spectat a ressurreição da carne. Ao Te Deum ondulante pelos corredores o noviço pendia de Hugo e Agostinho e do Padre Godofredo Strijbos em sua cela alcatifada Muito Reverendo Padre Vice-Provincial e o Padre Alberto Pasdeloug e o Padre Van der Arend mais o Padre Muniz redentorista mineiro bispo da Barra e o Padre João Evangelista e todos sabiam o caminho até o Padre Mestre — o Padre Vicente Zeij, o sabedor do caminho de Juiz de Fora para o céu — pendia do catálogo: Irmão Bonifácio Irmão Efrém Irmão Cristiano Irmão Martinho Broeder Laurentius Broeder Werenfried Broeder Bento e todos repartiam com o adolescente e os profetas de pedra a glória de Deus. E às vezes, Francisco, Teófilo, Leandro, Bernardo e os outros rapazes empinavam papagaios barrocos e entre eles os sábios papagaios dóricos de papel azul de Laudemir e o filho dos Mourões pendia das flores de papel desabrochadas ao vento da montanha sob o céu do país de Congonhas do Campo in illo tempore. E muitos outros nomes irei lembrando Lindolfo, Carlos, Antônio e Clemente e Miguel e Mário e Manuel e Gonzaga e tantos outros e súbito "Benedicat" — desce a bênção da noite e pendente das laudes, das noas e das vésperas pendente dos noturnos, da esperança do sino de matinas é silêncio é noite é leito e dos braços cruzados sobre o peito do que pende de tudo pende também, sobre uma cruz de cedro, o Cristo. E ninguém informava ao sono, à aurora qual dos dois pendebat o Cristo? o filho dos Mourões? o vivo? o morto? naquele tempo em todo tempo?


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *