Gerardo Mello Mourão 
Oito léguas pelo mesmo pampa triste
 
 
 Oito léguas pelo mesmo pampa triste
 o rastreador gaúcho consulta o inconsútil chão
 de joelhos
                         e era
 de seus olhos
 o adorador e criador de corpos
 senhor e servidor
 

 Termina o chão
                 começa o ar
 e onde se acaba
                 todo elemento
 seria um rastro:
 do coração de outubro
 amadurece ao sol
 tua laranja:
 boa tarde Calíope
 e o pé pentesileu
 pisava seu pentâmetro
 

 e uns perdem
                 e outros acham
 artelho e calcanhar e tornozelo
 entre solo e sol
 

 Do coração de outubro
 saltada a flor:
 quem despe um pé
 dum escarpim
 de cordobán?
 Pois busco o rastro
                 de joelhos
 de olhos no chão:
 talvez nas águas
 nas verdes águas
 sobre ele adeje
 gaivota sábia
 

 Ao vento de Delfos
 boiava a morte
 boiava morto
 Sebastião Muniz
 na fonte de Castália e ali pisaras:
 por onde um rastro um dia florescera um corpo
 tuas ancas, Mepômene, dançaram
 o mel e a lua de teus seios.
 

 Boa noite, Calíope,
 por onde?
 A morte de Sebastião Muniz viera caminhando
 ao tom das harpas guaranis
 — ó noite azul, ó estrelas
 flutuando no rio
 

 ó noite azul do Paraguai! — a morte
 de Passo de Camaragibe e Araripina
 aos montes da Tessália
 por serras e por mares caminhando —
 na praia do Senegal dera uni aceno
                 e por ali
 seu passo sertanejo — e sob aquele céu
 serrana e marinheira a Morte
 dizia chão e mar e por seu nome
 chamava cada chão e cada mar:
                 virias
                 defunta Musa
 e à sugerida lágrima 
 uma estrela caíu despedaçada — e ali 
 talvez ardera o pé do que pisara
 e à cadência da lira e ao som 
 da flauta andara andando
                 onde
 boiava ao vento de Delfos no jornal perdido
 a achada morte.

 
 

        Carrapateira — sertão da Paraíba —
        seiscentos habitantes receita orçamentária cem dólares 
        quatro casas comerciais e um candeeiro 
        amarelava a luz
        nas prateleiras de cachaça de Nezinho Varejão:
        Mariana debulha no jacá o milho elementar 
        debulha Laurentina o rosário penitente:
                        — "Tu crês, Arsênio, outro país lá em cima?"
                        — "Não sei — sei que andaram seis léguas —
                        terão casa? "
        João Pedrosa aponta a lua:
        no céu só Deus — no mundo o homem 
        terra pra riba de jeito nenhum — 
        o céu vive na vida boa
        pra nós tudo que vem é bom 
        eu piso em qualquer chão".
 
 

                        Chicão Gomes — "Deus 
                        não consente, gentes: 
                        a torre de Babel ia até o céu - o povo 
                        fazia a torre
                        todo mundo lá em cima falando 
                        a mesma língua — Deus não deixou  —
                        como castigo misturou as línguas". 
                        — "Deus deixa tudo" — Arsênio emborca 
                        outro martelo de aguardente — 
                        "Deus deixa tudo — o mundo é nosso 
                        quem sabe viver, vive — quem não sabe,
                        se acaba — a terminação é a cabeça da gente"
 
 

        Nezinho Varejão: 
        — "o homem não tem poder, Arsênio, 
        como o foguete engancha lá?
        Se chegar, não baixa, se baixar se machuca
        no rochedo de pedra:
        tudo é mentira
        acredita, Galdino?"
        — "Eu ? eu sou do tempo antigo 
        difícil o homem ir na lua
        quando era impossível, meu pai dizia:
        "Só se for no mundo da lua"
 
 

                        — Tem destino esse cabra americano"
                        Galdino se exalta:
                        — "o mundo vai acabar, Prefeito,
                        isto é conversa dos beiradeiros de pé-de-serra
                        mas o movimento dos homens dá de tudo 
                        morasse na cidade, eu ainda poderia pensar, 
                        lá eu via o movimento mais ou menos" 
                        — "Mas derrubar um boi - você derruba" 
                        — Peguei muito boi nesses pés-de-serra"
 
 

        Disse Antônio Matias: — "o aparelho 
        tem que passar do terreno para poder pousar 
        senão o cabra despenca lá de cima: 
        a entrada é caso de dificuldade" 
        — "Três já precisava coragem - imagine um só" 
        os homens riem na bodega de Adonias:
        "Se o cabra passar da lua vai parar nos
        quintos do inferno"
 
 

                        — "Com três é bom —
                        um diz uma palestra outro diz outra 
                        você — uma viagem de quatro léguas 
                        sozinho é duro 
                        com três montados é melhor"
 
 
 

       Arsênio acende o cigarro na lamparina:
        — "o americano diz que mandaram um gato
        — morreu".
        — "Não teve vida de resistência". 
        Nezinho Varejão:
        — "gato morre de fome de um dia pro outro"
 

         — "Gato morre" — sentença de Galdino
 

                        Um gesto, alguém limita o cosmos: — 
                        "eles irão passar da chuva? 
                        pois pra riba da chuva 
                        só Nosso Senhor".
 
 

        — "Contam — conta Adonias —
        a gente sobe no avião — olha pra baixo 
        é céu por todo lado 
        o cabra não sabe se tem terreno na lua 
        mesmo a três mil metros da terra brasileira 
        não sabe".
 
 

         — "Eu estou aqui 
         o sol gira — a terra 
         fica parada"
 
 

        — "Quando eu era menino vi um avião 
        o jumento largou as cangalhas 
        larguei o jumento com dois surrões de farinha
        do Engenho Sereno
        hoje é diferente
        gente está aqui sabe até
        que acontece no estrangeiro".
 
 

         — "Isto é exploração do dinheiro, Galdino".
 

        — "Isto é coisa do Cão
        o estudante diz que o mundo gira como a bala 
        do canhão".
 

                        — "A ciência está atrobada, Arsênio, 
                        eles têm muita ciência 
                        muitos acreditam outros não acreditam 
                        depende de Deus" —
                        — "Quando Deus consente — João Pedrosa —
                        o homem muda tudo
 

                        mas só quando Deus consente
                        senão não muda nada" —
 
 

        — "É o homem abaixo de Deus"
        — "A lua é um planeta que vive no espaço não tem 
        moirão nenhum pra segurar, o americano devia 
        trazer uma banda dela, mas quem manobra é Deus
        Nosso Senhor — o homem está invadindo o terreno 
        de São Jorge 
        está desafiando
        Deus castiga"
 
 

                        — "0 homem deve se contentar com o país dele" —
                        Joana ergue o rosário — 
                        "Mas o homem é igual.a Cabral: 
                        tinha coragem — estava sem destino 
                        acabou descobrindo a terra".
 
 

        — "Nosso Senhor não fez a Lua pro homem chegar perto 
        se quizesse, botava aqui em Piranha, bem pertinho 
        ai o homem ia de jumento"
 
 

                        — "Mas ele pára lá na lua para almoçar 
                        ou vem almoçar aqui embaixo 
                        no país dele?
                        Porque a viagem é comprida, gente"
 
 

        — "0 Prefeito tem razão:
        a Lua não tem terra nem pedra nem nada 
        só vento brabo e se o homem tivesse juizo não ia lá 
        a cruviana mata
                        ele
        o americano diz que a Lua joga lajedo de pedra:
        acho que é o corisco
        a Lua é um planeta sem infinidade 
        na capital têm um aparelho que vai até o rochedo dela 
        bem que Deus disse: aqui a minha semelhança — 
        e fez o homem
                        Deus é homem calmo 
        queria que o homem ficasse aqui 
        o homem está desafiando
                        Deus castiga".
 
 
 

 Antonio Faustino armazena feijão verde na sala 
 ouve a Voz da América e diz: 
 

                — "Deus não existe".
                E de repente caiu
                dos espaços infinitos sobre
                os homens e as mulheres caiu 
                um silêncio sagrado - vinha 
                de Ribeirão das Almas - duas léguas de Carrapateira 
                e ia subindo entre as ladainhas excelentes 
                o anjinho morto em seu caixão azul 
                ia subindo para o céu da tarde azul
                 ia subindo azul e ia ficando 
                sobre a estrada subitamente sagrada 
                o rastro do caixão florido — o rastro 
                das flores de salsa encarnada.

 

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