Gerardo Mello Mourão


Pois entre brisa e brisa deixei de navegar

Pois entre brisa e brisa deixei de navegar em barco de silêncio: tu, passaramagda, passaralena, pássara de água em minhas mãos desfeita, tu, se as flautas te soprassem — voltarias? Ou tu, passaraléa, pássara de água em pétala e milagre, cataléa asa pétala pássara de água em pétala e milagre de pétala g u a quem sabe deste sopro para sempre pássara de vinho no cristal das curvas deixarias bêbado o coração em cântaro durar-me? E tu, não tornarias, pajem, de teus coros e da lágrima tua e deste sangue, quem sabe um distraído querubim não inventara o sangue que nos falta? E vós, que de meu hálito uma noite respondesses à dança e florescestes — repetireis a face que vos trago? Continente de vivos e de mortos, eu vos quero chamar a leste, a sul, o pai em cuja boca a relva cresce, o irmão que dorme sob a madressilva e tantos que fiz meus: aquele adolescente, certa vez, de tantos mares vindo para apagar o verde de seus olhos entre as flores da ilha, numa carta qualquer. Desabituado o infante do materno peito, Onde era o seio sobre o busto ao longe arredonda-se um cáctus; e onde o lábio do infante aponta o espinho agora e sua dor a lágrima endurece nos teus olhos: que há entre mim e ti, mulher? Píetá! Pietá! Da rosa eu sei o nome e o nome sei da primavera e digo: e a rosa e a primavera são com todo o seu aroma; pois entre brisa e brisa navegamos em barco de silêncio cantarei as partidas e as chegadas, Bárbara, a estrela, Estêvão, quando a luz em viagem se esqueceu da morte, a estrela d'alva cantarei, Gonçalo, e a madrugada ao mar, Antônio, o trabalho, Efraim, das velas e das cordas e os corsários, Raul, e os bergantins, nossas bússolas bêbadas, Gofredo, Ipueiras e Rios de Janeiro e maios e Congonhas e profetas de pedra, Francisco, acordados da pedra ao cantar do galo e confissões e carcereiros, Curt e capitães e padres e sambistas e tripulações de freiras e meliantes, Napoleão, Napoleão, e cantarei contigo, Abdias, as mulheres sem nome, o menino, o apito do navio e o tédio do convés e as garrafas de gim, ó Paulo Fleming, Paulo de Manola. Dizei pétala à pauta da memória e a flor ensaiarei à flor da boca; dizei uva e nas taças da lembrança o vinho espumarei embriagado; e os estrangeiros no triclínio atônitos perguntarão se o menestrel de vós seria a sombra, a flauta, o pai, o filho que inventado talvez vos inventara.