Gerardo Mello Mourão
Balbuciei-lhe o nome e na penumbra
 
    Balbuciei-lhe o nome e na penumbra  
    esboçaram-se os olhos e os cabelos  
    e a boca e o gesto demoraram juntos  
    no espaço de onde ainda 
    não resolvera despedir-se o Anjo 
     
    esboçaram-se os olhos e os cabelos. 
     

    Balbuciei-lhe o nome e na penumbra  
    ia sílaba à sílaba o seu rosto  
    ousando a testa os lábios as maçãs;  
    das sobrancelhas o arco  
    confundia-se à auréola às asas quando  
    balbuciei-lhe o nome na penumbra. 
     

    A boca e o gesto demoraram juntos  
    tal na mesma corola cor e aroma  
    e eis que o mesmo logar no espaço a um tempo  
    ocupavam os dois:  
    o Anjo desatava na garganta  
    o nódulo do infante com seu módulo. 
     

    Começava a crescer; e as raparigas  
    e as cirandas à noite, ao canto em roda  
    iam acostumando o gato a rosa  
    a conhecer-lhe o nome e o meneio  
    do corpo ao atender  
    à laranja à cantiga à blusa azul. 
     

    A blusa azul do marinheiro à porta  
    foras talvez o Anjo de Tobias  
    que voltava em criança disfarçado  
    para a minha viagem  
    foras quem sabe uma resposta ao céu  
    criança mesmo — disfarçado em Anjo? 
     

    Foras quem sabe uma resposta ao céu  
    onde demoras desde tantos maios  
    acostumando a lua a estrela a nuvem  
    a conhecer-te o nome  
    e a decorar teu gesto de atender  
    à laranja à cantiga à blusa azul. 
     

    Ia sílaba à sílaba o teu rosto  
    compondo a melodia de teu nome:  
    se nele se empenhavam brisas deuses  
    e garotos da rua  
    eu mesmo desatei na minha boca  
    o nódulo do infante com teu modulo. 
     

    E um dia eu te chamei — ia chamar-te  
    e na escala da boca o solfejo do nome  
    nas cordas da garganta o roto violão  
    quebrou-se num soluço:  
    tu entre as flores tu entre as velas  
    tu entre as mãos cruzadas sobre o peito  
    tu entre o azul e o roxo e a palidez  
    ao longo desse lago de cedro  
    tu entre o dobre dos sinos  
    já flor já bronze à brônzea flor da mesa  
    tu nunca mais. 
     

    A boca branca erguias para sempre  
    a palmeira da primeira solidão. 
     

    Branco embora o bangalô da morte e a cruz coberta 
    de madressilvas e de primaveras  
    como amarias como cruzarias  
    salas e camarinhas enterrado? 
     

    Tu que amavas paletós  
    botinas amarelas e cavalos  
    tu que amavas o rio  
    e a poltrona da avó e um copo  
    de alumínio e os potes de água fresca  
    tu súbito a boca  
    cheia na véspera de risos a boca  
    cheia de terra cheia de raízes. 
     

    Tu tão recente súbito imemorial  
    eu aprendi contigo a despedir-me  
    a partir e a ficar — tu me ensinaste  
    a duração das flores e a madurez dos frutos.  
    Aprendi o percurso  
    de janeiro a dezembro  
    aprendi a distância que separa  
    o sábado e o domingo  
    e na ponte de brisas que reúne  
    maio a maio  
    a estrela de teu rosto se acendeu no tempo  
    eterna. 
     

    De teu rosto vivo de teu rosto morto  
    trabalhei o cedro e resultei  
    este aprendiz do amor  
    este aprendiz da dor  
    este aprendiz da solidão este aprendiz  
    de sepulturas e ressurreições.