Gerardo Mello Mourão

Hei de buscar teus cabelos de trigo
 
Hei de buscar teus cabelos de trigo 
no ventre de uma amante 
e repetir 
no ventre de alguma filha de um coronel do Báltico 
os teus olhos azuis, tua brava estampa, 
a poderosa mão, o cenho espesso sobre 
a tribo e sobre 
o talhe de teu tronco onde frondeja 
a cabeça de Mellos e Mourões: 
entre o rifle de coice na botina 
e a codorniz tombada te situas, 
José Ribeiro Mello, capitão de Floriano e coqueiro frondoso de Mellos 
e Mourões. 
 
 

E múltiplo e coral te cantarei 
achando-me e perdendo-me em teus gestos e 
brotando inumerável de teu tronco por onde 
a seiva de meus filhos borbulha na torrente 
de capitães-mores e barões de Holanda, 
de caciques da raça Tabajara, 
de pontífices, mártires, bandidos, nós, 
do Conselho do Mourão no Alentejo, nós, 
Carvalhedo, Araújo e Martins Chaves 
de Penedo, Alagoas, nós, 
da Capitania de Pernambuco, nós, 
Vera, nós, 
fidalgos de Utrecht, Holanda, nós, 
filhos da índia preada juriti na aldeia potiguara, nós, 
do regaço e do leite 
das princesas de ébano da Serra Leoa, 
o sexo alegre do baluba sob a alvura da tanga, 
nós, senhores de engenho, padres, bandoleiros, nós, 
orgulhosos do Coronel José de Barros Mello, chamado o Cascavel 
e do bacamarte de Alexandre Mourão 
com seus quatorze entalhes na coronha. 
 
 

Pela picada de teu engenho no pé da serra 
é o caminho do mundo. 
 
 

E canto em ti, com seu sobrinho Antônio, 
aquele coronel das Ipueiras, 
avô de meus avós que me legou 
a soberba ferida do leão na jaula 
por amor de elegâncias 
de sua condição de cavalheiro: 
de Manuel Martins Chaves 
aprendi a erguer sobre os calabouços a cabeça viril 
e cuspir no marquês, no general, no rosto do juiz 
 
 

Ao teu afago rude parecia talhar-se 
a cabeça do infante em tuas mãos: 
de tuas mãos recolho a herança que me deram 
os pais de minha raça: 
a mandíbula quadrada e o gosto 
das velhas aguardentes e das putas 
e o gosto das pistolas e da morte 
e dos assassinos e dos assassinados 
e os espantados olhos 
assíduos a defuntos como a vivos. 
 
 
 

E era uma vez o hercúleo avô 
de olhos azuis e ensinou 
a preparar a vida e ensinou 
a preparar a morte e a morte 
avançou a labareda de sua coivara 
lenta e implacável: primeiro, 
lambeu suas pernas de gigante, subiu 
pela poltrona e lhe alcançou as mãos, 
projetou-se em seus braços, em seu rosto, até 
erguer-se trêmula em seus olhos azuis 
e abater-se no breve telegrama. 
 
 
 

Àquele afago rude uma cabeça 
um coração talhou-se: 
vita hominis super terram militia — ex libro Job — 
e é bom ser bravo e é bom 
o olhar felino enxergar o caminho 
da noite 
e é bom 
poder o ouvido sábio conhecer ao longe 
a pisada 
da morte. 
 
 
 
 

Madame Sosostris, Eliot, T.S. Eliot e o velho Major, seu Né das Águas Belas 
eram de profissão adivinhões: 
mas tu, 
tu eras uma vez 
e era contigo e eu o guardo na viagem 
talismã à branca amada que carrego no espinhado 
o logaritmo da vida e da morte 
gole a gole 
saboreadas. 
 
 
 
Quem sabe eu não viajo senão 
para trazer 
teus cabelos de trigo do ventre de uma filha de um coronel do Báltico 
e teus olhos azuis, tua bravia estampa 
repetir no tempo?