Gerardo Mello Mourão
Nênia da Sibila
 

    Onde agora
    A forma
    restauração da rosa espedaçada?  Onde 
    o rastro onde o gesto onde a maneira 
    da corola outrora?
     
     

    E bem que possuías.  Bem que de teu sopro 
    batidas desprendiam-se e caíam: 
    era o canto, era o aceno a aparição 
    na sílaba caindo de teus lábios 
    pétala à pétala apagando-se a flor 
    pétala à pétala a tua boca o fruto
    do enigma com seu rumo.
     
     

    Restaria o perfume restaria
    o ouvido tantas vezes ansioso
    a espera alguma noite de um rumor qualquer 
    que não sabemos bem:
     
     

    da pedra agora lisa onde palavra 
    e riso foi teu rosto apenas 
    água e limo descem:
    quem sabe que lembrança de teus olhos 
    de tua lágrima?
     
     

    Ora de fogo ora de água ora de ar 
    brotava e transitava a palavra de Apolo 
    e foi-se transformando tudo em cinza 
    areia
    soprada
    e um sino às próprias badaladas gasto 
    e as ondas de seu som desmaiando se esquecem 
    do caminho da volta à cor primeira.
     
     

    Ai! poder trazer-te nos aflitos olhos 
    o aflito coração populoso 
    da mudez dos perfumes e das sombras 
    em busca de seu corpo e sua essência 
    seu número e seu nome.
     
     

    Ai tempos de Apolo tempos de púrpura 
    ao ritmo de teus ombros e teus braços 
    à regência
    de teus lábios:
    ai tempos de outrora tempos de púrpura 
    hoje mortos contigo 
    e do silêncio de teu corpo agora 
    como erguer o sudário em que as auroras 
    se amortalharam sobre a tua boca?
     
     

    Eram de ti nas mãos de amantes e guerreiros 
    hexágonos de luz 
    dormirias no bosque, ó dos contos de fada,
    para acordar um dia e a festa ser de novo?
     
     

    O luar do mistério iluminava os cegos 
    pudessem hoje o príncipe e o guerreiro 
    ao fio de tua voz governar seus cavalos: 
    pelas alamedas
    nunca se perdiam teus aflitos.
     
     

    Ai de nós, ó morta, a solidão de agora 
    nos diz tudo de nós.  Sombras e espelhos 
    dizem de nosso corpo e as mãos no espaço ajustam 
    a resposta das formas já medidas 
    e os abismos nos faltam os abismos 
    de rosas e de lírios: 
    tu, nome de aroma 
    tu, mistério conosco.
     
     

    Junto ao teu esquife debruçados 
    morta — já nada te perguntaremos 
    decifrada e fatal em teu sarcófago: 
    sobre teu lábio agora as chaves são de cinza 
    e do mistério morto o pulso 
    nunca tomaremos: 
    fora belo rasgar os vidros de amanhã 
    ao sopro de diamante dos oráculos.
     
     

    Que importa também fosse insondável abismo 
    a tua voz?
     
     

    Ao mistério o mistério respondera: 
    já ouviste no vale o eco mensurar 
    a trompa matinal dos caçadores: 
    tal na rosa acontece o perfume 
    e a rosa é sugerida.
     
     

    És morta e de teu seio
    o agouro das estrelas já não bole 
    no coração por onde medram 
    da garganta à boca os musgos 
    e apascentam a pedra do silêncio.
     
     

    Foi banida de nós a noite a mera noite 
    e banidos o medo e a treva e o silêncio 
    da noite em que falavas.
     
     
     

    Entanto às vezes quantas vezes
    uma saudade chega e um instante parece 
    noite
    eterna solidão de eterna noite 
    e teu último poeta fere na pedra a boca 
    súbito, lembrada de teu nome