Gerardo Mello Mourão


Barão publicou na Revista do Instituto Histórico

Barão publicou na Revista do Instituto Histórico as Memórias de Alexandre Mourão: muito sangue e muito amor nessa história e as velhas da família contam com ódio e orgulho a devastação das terras dos Mourões pela tropa imperial Alexandre Mourão salvou-se atravessando a nado o rio Parnaíba com um patacão de dois mil réis na boca e o ódio e o orgulho e o sangue e o amor e os patacões de prata são a herança de meus filhos e a minha tarefa é atravessar o rio a nado com o ódio o orgulho o sangue o amor e os patacões de prata na boca e nunca perecer na travessia e saltar na terra estrangeira a água de meus rios escorrendo dos cabelos e o barro de minha terra no couro das alpercatas e do peito. Francisco, neto de Tobias, tinha os cabelos de ouro e arrancava comigo no quintal as penas dos pavões azuis e caiu da grande cajazeira sobre a lança do gradil e houve um jorro de sangue em sua coxa o sangue pintou a cauda azul dos pavões o sangue dos Mourões se derrama no país dos Mourões há quatro séculos o velho Tobias derramou o seu nos dentes de um jacaré do Amazonas também o derramam das coxas as raparigas fecundas temos cobrado largamente o nosso sangue e do alimento da bravura o nosso coração faz a sua pureza e a sua força e na festa rústica à beira da fogueira nossos adolescentes ensinavam os meninos a cantarem na viola em mesmo tom o amor e a morte. E as primas prometiam o seio e o ventre às estrelas de agosto e à lua do Equador. A linha do Equador passa aqui perto e o signo de Capricórnio já me envolve no tempo e no espaço e envolta nele ao luar do trópico — ó noite de Crateús! — veio Elisa banhada no açude veio Carmen banhada nos jasmins da noite vieram as primas de vestido encarnado e veio ao coração do infante o vaticínio do rosto que trarias o anúncio de teus olhos e o desejo dos quadris adivinhados noutras noites mais longe possuídos. A linha do Equador passa aqui perto e de seu fio de fogo o meu novelo há de levar ao coração varado do Minotauro e dali devolver a alegria dos rapares e raparigas de Atenas a linha do Equador passa aqui perto e em portulanos de Gênova e de Sagres fui sonhado: Vicente Yañez Pínzón e Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral e Bartolomeu Perestrello e o Infante Dom Henrique e Isabel, a Católica, me caçavam no mar entre hipocampos. "Se o Amor servir de guia, terás êxito" disse a Teseu o oráculo de Delfos. De tuas mãos, amor, recebo o novelo de fogo da linha do Equador e vou e volto e devolvo aos conquistadores rijo e novo o pênis que por mim se murchara no ventre da índia Iracema da tribo tabajara. Branca filha de Telefasse! Crescem ao sol numa terra de sol essas flores de cactus da grinalda que me dói na cabeça cresce a fome das ervas que já vou pastar em tua mão: sobre as margens do Letes os plátanos de Creta aprenderão as palmas sempre verdes do buriti selvagem. Não me temas se venho coroado dos cactus e talictres do país dos Mourões e trago o rosto rude das terras imaturas sou filho de Calíope e fui eu que recebi de Apolo na floresta virgem a cítara de Linos e aprendi a tanger a cítara de Linos e fui o primeiro a juntar mais duas cordas à cítara de Linos e de volta do país moreno sou eu que vou introduzir de novo em tua casa a expiação dos crimes, o culto de Dionísios, de Hécate Ctônia e os outros mistérios órficos. Todas as noivas mortas voltarão quando eu tanger a lira no Tenaro e condoer os capitães do inferno. Não, eu não te perdi; ao teu encalço viajei o inferno e demorei no inferno e ainda espedaçado nas orgias trácias as águas do rio a arrastar-me a cabeça cortada os lábios à torrente clamariam teu nome — e tu serias no meu canto e touro e cisne e degolado Orfeu a flor do talictres tem o cheiro da semente humana em meu lombo em minha asa em minha lira em minha toledana celebrarás, ó bem amada, o teu guerreiro e o teu cantor.


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