Gerardo Mello Mourão


Àquele tempo a musa pícara

Àquele tempo a musa pícara ensaiava os tanguinhos brasileiros de Ernesto Nazareth e oh! que saudades que eu tenho da aurora da minha vida ia colher as pitangas trepava a tirar as mangas à sombra das bananeiras debaixo dos laranjais livre filho das montanhas eu ia bem satisfeito de camisa aberta ao peito pés descalços, braços nus correndo pelas campinas à volta das cachoeiras atrás das asas ligeiras das borboletas azuis e surgia ao salto de um peixe de prata na cachoeira a garganta respondia ao trom das águas e o reflexo dos mangarás vermelhos se quebrava na lagoa aos cangapés e deles súbito o fauno de sete anos relinchava no barranco erguendo a saia da menina aguadeira. Tereza, filha de Damiana, puta da beira do rio, era botadeira de água e meu primo Francisco aguardava, dia a dia, seus treze anos chegarem e um braço na cintura e outro na cabeça onde se erguia a cabaça de água limpa anunciavam seus dois seios e sobre suas ancas baiadeiras já Tereza ensinava o caminho da Grécia e a rua do alto onde a grande pedra terminava junto à casa de Antônio Pinho e Olívia na graça de um cabrito Imóvel ao crepúsculo. Estrela do mar sobre o lago do ventre estrela de pelos pentágono pentélicon pentelhos pentâmetro pentateuco do amor! Tereza, filha de Damiana, puta da beira do rio anunciara o pentâmetro de ouro da canção ninho da estrela e o bulício do pássaro da estrela preparava a lua e o mel de tua noite. De longe venho para a possessão e da lua e do mel e da noite Tão minha como as terras, as cabras, as novilhas, os patacões de prata e os rifles de papo-amarelo e os engenhos de cana e as raparigas essas terras são minhas e a mais das escrituras de meu avô Major ou de Manuel Mourão nos cartórios de Tamboril e Ipueiras sobre elas hei lavrado a escritura de meu canto. Doação de minha avó, Dona Ana Feitosa: "Trezentas braças de terra de comprido e outras trezentas braças de largo, de uma só banda do rio Acaracu, da parte do sul, onde ela, doadora, tem sua casa de vivenda, com quarenta vacas situadas neste mesmo logar, ao Senhor Santo Anastácio, para patrimônio de uma capela que se pretende erigir neste mencionado logar do Tamboril e nela colocar dito santo". O Capitão encomendara em Pernambuco uma imagem da Senhora Santana, que seria a padroeira, e os comerciantes do Recife, por engano, mandaram Santo Anastácio. De qualquer forma, o chão de Deus foi tirado de minhas braças de terra e Santo Anastácio, padroeiro por engano, tem seu logar ao lado de São Gonçalo dos Mourões, que essas terras são minhas, desde as dezoito léguas de serra na Serra dos Cocos, de São Gonçalo dos Mourões, até os limites da Serra Azul e o sertão de Bruxaxá, Borborema, Paraíba, onde os vaqueiros encourados furam grotas testemunha José Joffily no rastro do boi ensebado e ainda ali assentamos os currais reiúnos e os engenhos de rapadura e cachaça até o grande sertão que se abre depois da Canabrava dos Mourões, ao pé da serra dos Mourões do pé-da-serra e se estende pelo Crateús, Piauí a oeste, e se dilata do antigo cortume de Nova-Russas dos Mourões, que ali tinham mulheres ruças e éguas ruças, e vai para o sertão do Tamboril e atravessa os Inhamuns, onde dorme meu pai e chega ao Tauá e à Mombaça onde os Feitosa somos senhores do Cococi e de outras terras e onde era a minha avó do país dos Calabaças. Nesta estrada que o senhor está vendo, onde não há um pé-de-pau para se descomer atrás, o Major Galdino, seu avô, derrubou a rifle um caboclo sem prestância. O Major beirava os oitenta, fez pontaria do alto de rua burra de sela — uma burra baia — e creio que foi a última façanha dele, das vinte e seis que se conhecem. Enviávamos às nossas mulheres rosários de ouro e pulseiras de ouro e a orelha sangrenta do inimigo dentro do porta-orelhas de ouro que hoje está entre as jóias da prima Sinhá. São minhas essas terras, as vacas, os mandiocais, as casas-de-farinha e os vaqueiros e suas orelhas e suas fêmeas: de trinta e duas delas teve filhos o Coronel José de Barros Mello, chamado o Cascavel, meu tetravô e os bastardos do General cobrem as terras que são minhas que hei lavrado em meu canto e sobre elas vou lavrando a escritura de meu canto desde as ribeiras do Acaracu, do Potí, do Jatobá, até o Parnaíba, o sertão de Oeiras, Piauí onde o avô de meu avó foi Capitão-Mor, Governador da Província, Vítor de Barros Galvão, até o São Francisco onde canta o poeta do país das Gerais, onde Penedo ergue seus templos de pedra e a flor de pedra de seus templos de onde viemos e onde a formosa filha de Alagoas banha o seio moreno: naquele tempo meu avô alagoano, o Coronel Martins Chaves, deu duas léguas de terra a São Francisco e duas arrobas de ouro e prata à filha núbil e dois bacamartes de coronha lavrada ao genro Carvalhedo e sobre o voto a São Francisco e sobre duas arrobas de ouro e prata e sobre dois bacamartes de coronha lavrada das Alagoas ao Ceará foi construída a raça dos Mourões in illo tempore. Esta é a bengala de seu avô e esta de toledana é de meu padrinho Padre Feitosa e com ela, mais seu avô, mais o velho Alexandre Mourão, mais oitocentos parentes e cabras das Ipueiras, mais quinhentos do Tamboril invadimos Crateús para tirar da cadeia nosso primo, o Coronel Giló, e defender os nossos primos Correia Lima, que estavam se acabando na política de baixo e os Correia Lima não podiam se acabar antes de Emília, a mais bela de seus país. Naquele tempo a beleza das mulheres nos fez valentes e Antônio raptou Maria Veras e de Alexandre um dia sem esperar foi descoberto e custou caro — conta ele — o belo amor e do Piauí ao Maranhão a Pernambueo o sangue de Manuel, de Sinhôsinho, do Cascavel foi derramado por amor das mulheres e por ela e por todas elas, por três, por duas e por uma delas aguardo militarmente el tiempo e sirvo o dia e a noite a coice d'armas con el florete de la aventura manchado de sangre no olvidada e estou de partida e não me parto e me muero porque no muero e não quero morrer e sobrevivo entre os que tombaram à esquerda e à direita para comer a erva tenra em sua mão e carregá-lo no lombo e à sombra do plátano ensinar ao seu ventre a prenhez dos Mourões ensinar ao seu ventre a prenhez e a dor e o sangue dos Mourões e a alegria da ressurreição a alegria dos rapazes e raparigas de Atenas.


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *