Gerardo Mello Mourão


Hoje é dia de louras, Abdias

Hoje é dia de louras, Abdias, telefona e amanhã quero Wanda Moreno, quero Hilda, quero Rosa e depois quero de novo a ruiva da Barata Ribeiro, quero Néa, quero Paula da casa de Arabela e Lourdes com Marina e quero todas da casa de Helenita: meu avô passou nos peitos todas as filhas dos moradores do engenho os Mourões raparigueiros há trezentos anos: eram cinqüenta mulheres à noite no cabaret entre elas uma francesa sentada num canapé Raimundo Mourão brigava com o vigário da Sé trazia o diabo no couro quando entrou no cabaret as mulheres quando o viram ficaram todas em pé. Deixara em baixo o Marreira no cabresto do alazão na cinta o coldre bordado e unia chibata na mão parecia um cangaceiro do bando do Lampeão a parnaíba nos quartos vinte léguas de sertão cantador Nertan Macedo afina já teu bordão matéria-prima do verso este é um Mello Mourão valente rico e faceiro dançador e fanfarrão tanto bebe como canta como atira que nem cão mulheres no porta-seios segurem o coração "couro bando papaceia o chão imemorial o bode o cavalo o boi o sentimento mortal o homem caça dileta refletida no punhal" tanta tesão entre as coxas como balas no embornal A noite se encheu de tiros começou a confusão não ficou homem na sala pois quem enfrenta um Mourão? as luzes levando chumbo virou tudo escuridão provou as cinqüenta fêmeas pôs a mão no coração e sentiu que ele no peito não se fartara inda não não encontrava em Francisca os seios de Conceição nem em Antônia a cadência que as ancas de Isaura dão: só mesmo teus olhos verdes dariam a ordenação capaz na noite e no dia de saciar um Mourão mas antes que tu chegasses um punhal na escuridão deixou morto aquele macho banhado em sangue no chão: caça dileta do amor tombou Raimundo Mourão herdei-lhe a espora de prata o rebenque e o alazão relógio de ouro maciço de corrente e medalhão trinta e dois de carga dupla o clavinote alemão e na bainha de couro o punhal de estimação dezoito pentes de bala cartucheira e cinturão os olhos concupiscentes a aguardente e a perdição o gosto de mulher boa procurada com paixão e atrás de ti pelo mundo abandonei o sertão.


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