Gerardo Mello Mourão


Era uma vez

Era uma vez Maria Alves Feitosa, da raça de minha avó, e era mulher de Francisco Feitosa e o marido amava as violas doces e as aguardentes ásperas e Maria, quando rezava suas novenas na igreja — conta Leonardo — tinha por costume mandar os grupos de escravas, que eram as cantoras, entoarem cânticos da igreja até a casa de sua residência e uma tarde no momento em que partiam da igreja e as negras começavam o cântico veio Francisco embriagado e esbofeteou o rosto de Dona Maria Feitosa e as negras como sapo quando se bate n'água calaram-se e pararam: e a senhora ordenou-lhes marchassem e cantassem: não fora nada, sendo por seu marido, não era agravo e o vigor dos machos é sempre doce ao coração das fêmeas na raça dos Mourões e entre alcova e templo ao tom das ladainhas e ao canto das escravas aprendemos o touro e as raparigas aprendem o arrebatado amor e Mariana mulher de Eufrásio, senhor do Cococi mandou surrar e tonsurar a rapariga e o Capitão-Mor puxou da bota uma faca aparelhada de prata e lavada de sangue e sempre a morte se nutriu do amor e o vigário do Cococi excomungou o Coronel: surrara, debaixo do altar-mor onde se escondera, O vilão que ousara versos a Joana, sua irmã, da raça dos Mourões e só para alcova de Mourões eleita e o Bispo de Olinda retirou-lhe a excomunhão: matasse feras em vez de matar homens e os Feitosa entravam a galope na cidade com uma onça sangrenta na garupa e um deles matou noventa e seis onças sem armadilhas, sem armas de fogo, sem mundéu, sem gangorra e sem curral apenas com sua faca de Pajeú e os três cachorros Elefante, Corujo e Mosquete: na boca da última delas deixou o couro da cabeça e o escravo fiel deixou a mão, a faca encravada e a implacável morte tanto me atendem à cítara como à ponta do punhal e Leonor ficou viúva e um dia a casa de Leonor amanheceu fechada e Leonor havia desaparecido e Leonor era — conta Leonardo — uma viúva nova e muito formosa depois se soube: fora raptada pelo Major Eufrásio Feitosa e por ele situada numa casa em um alto e ainda hoje ali se chama o Alto de S'a Leonor e os montes e os rios e as devezas e as várzeas guardam, da Serra da Joaninha ao Riacho do Sangue, o nome com que os machos nomearam amor e nomearam morte no país dos Mourões tanto me atendem à citara como à ponta do punhal, tanto a meu punho se deitam os vencidos na macega como a meu canto as mulheres na ribanceira do rio: explica, Maria Helena, como esta doçura é forte e o vigor desta bravura: chama a princesa e estremeçam seus seios na minha mão: não sou Teseu nem Orfeu, os dois são Mello Mourão. Nünca houve nesta raça homem não raparigueiro e nela não se conhece uma casada infiel: no couro dos Mourões sobeja o macho a ti domava a citara a outras o músculo. ... deixa-me pastar a erva em tua mão. E tu, que não morres de mim, vives de mim a ti e só a ti ofereci a melodia a um tempo de citara e de músculo e só tu saberias dizer o contraponto do canto que inventei aos teus ouvidos e à doçura de sua força arrebatada no meu lombo e no êxtase ela acenderá no crepúsculo a estrela da manhã: sob o ventre pentélicon pentagrama de ouro!


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